segunda-feira, 3 de agosto de 2020

MANUAL 8 DA CADEIRA DE HISTÓRIA E SISTEMAS DE PSICOLOGIA, PARA O CURSO DE PSICOLOGIA ESCOLAR, 1º ANO. ANO LECTIVO 2020/2021- ISEDEF. DOCENTE: SILVA ANLI; site:dr-anly.blogspot.com “CLUBE DE OPINIÃO CIENTÍFICA”; email:dr.anly1962@gmail.com Discussão sobre a Psicologia da Psicanálise e outras escolas psicológicas Mais de quarenta anos depois da morte de Freud, a revista Newsweek observou que suas ideias se tornaram tão penetrantes que “seria difícil imaginar o pensamento do século XX sem ele” (30 de novembro de 1981). Concordemos ou não com suas teorias, não se pode negar o impacto de sua obra. Ele é um dos membros do pequeno grupo de indivíduos que foram fundamentais na história da civilização ao modificarem a maneira como pensamos a nosso próprio respeito. Em termos cronológicos, a psicanálise se entrecruza com as outras escolas de pensamento psicológico de que nos ocupamos. Consideremos a situação em 1895, ano em que Freud publicou seu primeiro livro, marcando o começo formal do seu novo movimento. Naquele ano, Wundt tinha sessenta e três anos. Titchener, com apenas vinte e oito, só estava em Comell há dois anos e começava a desenvolver seu sistema de psicologia estrutural. O espírito do funcionalismo começava a se desenvolver nos Estados Unidos, mas ainda não se formalizara em escola. Nem o comportamentalismo nem a psicologia da Gestalt tinham começado: Watson tinha dezessete anos e Wertheimer, quinze. E, no entanto, à época do falecimento de Freud, em 1939, todo o mundo psicológico se modificara. A psicologia wundtiana, o estruturalismo e o funcionalismo eram história. A psicologia da Gestalt estava sendo transplantada da Alemanha para os Estados Unidos, e o comportamentalismo se tornara a forma dominante de psicologia americana. Freud alcançara proeminência internacional, mas sua posição já estava se partindo em subescolas e movimentos derivativos. O relacionamento entre a psicanálise freudiana e as outras escolas de pensamento em psicologia foi apenas temporal. Não havia vínculos substantivos, quer em termos de concordância ou de dissidência, entre Freud e os outros fundadores no campo da psicologia. As outras escolas deviam seu impulso e forma a Wundt, quer desenvolvendo-se a partir de sua obra, como foi o caso do estruturalismo e do funcionalismo, quer se revoltando contra ela, como ocorreu com o comportamentalismo e a psicologia da Gestalt. A psicanálise, em contraste, não tinha vínculo directo com esses movimentos evolutivos e revolucionários, pois não surgira no âmbito da psicologia académica. O estudo freudiano da personalidade humana e dos seus distúrbios estava bem afastado da psicologia do laboratório universitário. Apesar de suas discordâncias fundamentais, os outros sistemas de pensamento tinham um legado académico comum. Seus conceitos e métodos básicos tinham sido formados e aprimorados em laboratórios, bibliotecas e salas de aula. Suas preocupações tradicionais eram tópicos como a sensação, a percepção e a aprendizagem. Esses sistemas eram — ou se esforçavam por ser — ciência pura. A psicanálise, por sua vez, não era um produto da academia nem uma ciência pura. Em consequência, não era, e ainda não é, uma escola de psicologia directamente comparável com as outras. A psicanálise não se ocupava das áreas tradicionais da psicologia, em especial porque a preocupação delas é oferecer terapia a pessoas com distúrbios emocionais. Desde o começo, a psicanálise era separada e distinta do pensamento psicológico principal em termos de objectivos, objecto de estudo e métodos. Seu objecto de estudo é o comportamento anormal, que fora relativamente negligenciado pelas outras escolas de pensamento, e seu método primário é a observação clinica, e não a experimentação laboratorial controlada. Do mesmo modo, a psicanálise está voltada para o inconsciente, um tópico virtualmente ignorado pelos outros sistemas de pensamento. Wundt e Titchener não admitiram o inconsciente em seus sistemas por uma razão simples: é impossível fazer introspecção com o inconsciente. E como não é possível fazer isso, não se pode reduzir o inconsciente aos seus componentes elementares para determinar seus conteúdos. Os funcionalistas, da mesma maneira, com seu foco exclusivo na consciência, não tinham o que fazer com o inconsciente. No extenso manual que James Rowland Angeli publicou em 1904, não havia mais do que duas páginas, no final, dedicadas à noção de inconsciente. O compêndio de 1921 de Robert Woodworth tinha pouco mais a dizer sobre isso, cobrindo o assunto nas últimas páginas — tal como Angeli, como um apêndice, elaborado depois de o livro estar pronto. John B. Watson, é claro, tinha tanto espaço em seu sistema para o inconsciente quanto para a consciência. Para a sua abordagem de ciência natural da psicologia, nenhuma dessas entidades tinha validade. Entre 1912 e 1920, o Psychological Builetin publicou artigos anuais intitulados “A Consciência e o Inconsciente”, que todos os anos depreciavam e denunciavam o conceito desses estados mentais num tom cada vez mais vociferante, até que os artigos deixaram de aparecer (Fulier, 1986). Apesar dessas diferenças, a psicanálise tem algumas características secundárias partilhadas com o funcionalismo e o comportamentalismo. Todos esses movimentos foram influenciados pelo estrito do mecanismo, pela obra de Gustav Fechner e pelas ideias revolucionárias de Charles Darwin. Influências, Antecedentes sobre a Psicanálise Tal como acontece com todas as escolas de pensamento, o movimento psicanalítico teve antecedentes intelectuais e culturais definidos. Duas fontes principais de influência foram as primeiras especulações filosóficas acerca da natureza de fenómenos psicológicos inconscientes e os primeiros trabalhos no campo da psicopatologia. Teorias do Inconsciente Vimos que, na maior parte de sua história inicial, até o advento do comportamentalismo, a psicologia científica se ocupava da experiência mental consciente. Do mesmo modo, os filósofos empiristas, que forneceram uma base para a nova psicologia, tinham como foco a experiência consciente. Contudo, nem todos os que trabalhavam nesses campos concordavam com essa orientação. Alguns também admitiam a importância de processos não conscientes. Embora o interesse pela influência do inconsciente possa remontar a Platão, o pensamento mais recente sobre o tópico acompanhou a obra de Descartes, no século XVII. No começo do século XVIII, o filósofo e matemático alemão Gottfried Wilhelm Leibnitz (1646-1716) desenvolveu a teoria da monadologia. As mônadas, que Leibnitz considerava os elementos individuais de toda realidade, não eram átomos físicos. Elas nem sequer eram inteiramente materiais, na acepção usual da palavra. Cada mônada era uma entidade psíquica inextensa que, embora de natureza mental, tinha algumas das propriedades da matéria física. Quando um número suficiente delas se agregava, criava-se uma extensão. Em termos gerais, podemos comparar as mônadas a percepções. Leibnitz acreditava que os eventos mentais (a actividade das mônadas) tinham diferentes graus de clareza ou consciência, que podem variar, completamente inconsciente ao mais nítida e definidamente consciente. Graus menores de consciência eram denominados petites perceptions, e a actualização consciente dessas pequenas percepções foi denominada apercepção. Por exemplo, o som das ondas arrebentando na praia é uma apercepção. Essa apercepção se compõe de todas as gotas cadentes individuais de água (as petites perceptions) As gotas individuais não são conscientemente percebidas em si; mas, quando um número suficiente delas se combina, elas se somam para produzir uma apercepção. Um século mais tarde, o filósofo e educador alemão Johann Friedrich Herbart (1776-1841) desenvolveu a noção do inconsciente de Leibnitz, criando o conceito de limiar da consciência. As ideias que estão aquém do limiar são inconscientes. Quando uma ideia assoma num nível consciente de percepção, ela é apercebida, nos termos de Leibnitz, mas Herbart foi além disso. Para que uma ideia assome na consciência, é preciso que ela seja compatível e coerente com ideias já presentes na consciência. Não é possível existirem ao mesmo tempo ideias coerentes e incoerentes na consciência, e as ideias irrelevantes são expulsas da consciência, tornando-se ideias inibidas. As ideias inibidas existem abaixo do limiar da consciência; elas são semelhantes às petites perceptions leibnitzianas. Segundo Herbart, há entre as ideias um conflito em que elas lutam pela realização consciente, e ele propôs fórmulas e equações matemáticas para dar conta dos mecanismos das ideias em sua entrada na consciência ou expulsão dela. Logo, seu trabalho revela a influência do espírito mecanicista. Gustav Fecimer também contribuiu para o desenvolvimento de teorias sobre o inconsciente. Ele usou a noção de limiar, mas foi a sua sugestão de que a mente equivale a um imperceptivel que teve um maior impacto sobre Freud. Em sua analogia com imperceptivel, Fechner especulou que uma parcela considerável da mente está oculta sob a superfície, onde é influenciada por forças não observáveis. É interessante que Fechner, a quem a psicologia experimental tanto deve, também seja precursor da psicanálise. Freud citou em vários dos seus livros o de Fechner, Elementos de Psicofísica, tendo derivado conceitos importantes (o princípio do prazer, a energia psíquica, o conceito topográfico da mente e a importância do instinto destrutivo) da obra de Fecimer. Um dos biógrafos de Freud observou que Fechner foi “o único psicólogo de quem Freud tomou alguma ideia” (Jones, 1957, p. 268). A noção de inconsciente era parte integrante do ideal europeu da década de 1880, época em que Freud iniciava sua prática clínica. Além de ser do interesse dos profissionais, a ideia de inconsciente também era considerada um assunto da moda para as conversas em geral. Um livro chamado Philosophy of the Unconscious (Filosofia do Inconsciente), de Hartmann, publicado em 1869, era tão popular que teve nove edições entre esse ano e 1882. Nos anos 1870, ao menos meia dúzia de outros livros publicados na Alemanha tinham a palavra inconsciente no título. Freud, portanto, não foi o primeiro a descobrir ou mesmo a discutir seriamente a mente inconsciente. Ele era o primeiro a reconhecer que poetas e filósofos antes dele tinham se ocupado amplamente do inconsciente. O que ele descobrira, afinnava Freud, fora um modo de estudá-lo. A Psicopatologia Observamos que um novo movimento sempre requer algo contra que revoltar-se, algo em que se apoiar para ganhar impulso. Como a psicanálise não se desenvolveu no âmbito da psicologia académica, a ordem vigente a que ela se opôs não foi a psicologia wundtiana nem nenhuma outra escola de pensamento psicológico. Para descobrir aquilo a que Freud se opunha, é forçoso considerar o pensamento prevalecente na área em que ele trabalhava — a compreensão e o tratamento de distúrbios mentais. A história do tratamento dos doentes mentais é fascinante e depressiva, apresentando um chocante quadro de desumanidade. Na Idade Média, os indivíduos perturbados não obtinham nenhuma compreensão e não recebiam quase nenhum tratamento. Afirmava-se que a mente era um agente livre, responsável por sua própria condição. O tratamento de pessoas mentalmente perturbadas consistia principalmente em incriminação e punição, pois se acreditava que as causas dos distúrbios emocionais eram a perversidade, a possessão demoníaca e a feitiçaria. Na Renascença, as coisas não melhoraram: As grandes mudanças de estrutura social na época da Renascença suscitaram um sentimento geral de incerteza e insegurança... Homens inseguros, incertos com relação ao futuro, frustrados pelas transfomações, ficam prontos a exorcizar a ameaça do mal através de uma distribuição acrítica de recriminações e punições. No século XV, a Igreja fazia isso por eles. Em 1489, Jacob Sprenger e Heinrich Kraemer, dois irmãos dominicanos, aproveitando-se da recente invenção da imprensa, publicaram o Maileus Maleficarum, título que talvez possa ser melhor traduzido por “O Martelo das Feiticeiras”, já que o livro se destinava a ser um instrumento para martelar as feiticeiras. O Maileus Maleficarum é uma cruel enciclopédia sobre feitiçaria, detecção de feiticeiras e procedimentos para examiná-las por meio da tortura, bem como para sentenciá-las... Ele identifica a feitiçaria com os distúrbios mentais, dos quais descreve com cuidado muitos sintomas. Durante trezentos anos, em dezenove edições, esse compêndio malévolo foi a autoridade e o guia da Inquisição (Boring, 1950, pp. 694-695). Por volta do século XIX, uma atitude mais humana e racional em relação aos doentes mentais começou a surgir. Na Europa e na América, as cadeias que prendiam os insanos foram literalmente quebradas à medida que o declínio da influência da superstição religiosa abriu o caminho para a investigação científica das causas das doenças mentais. Os tratamentos oferecidos eram, na melhor das hipóteses, primitivos, por vezes causando mais sofrimento do que as perturbações que pretendiam curar. A teoria da monadologia, proposta por Gottfried Wilhelin Leibnitz, foi uma primeira tentativa de explicar os processos inconscientes. Considerem-se as téccnicas desenvolvidas por Benjamin Rush (1745-1813), o primeiro psiquiatra a clinicar nos Estados Unidos. Ele acreditava que alguns comportamentos estranhos eram causados pelo excesso ou pela falta de sangue, e seu remédio era tirar sangue do paciente ou colocá-lo nele. Ele desenvolveu uma cadeira rotativa que fazia o infeliz girar em alta velocidade, procedimento que com frequência provocava desmaios. Numa forma primitiva de tratamento de choque, Rush mergulhava os pacientes numa banheira. Também se deve creditar a ele a primeira técnica tranquilizante. Os pacientes eram amarrados numa cadeira tranquilizante e aplicava-se pressão em sua cabeça com grandes blocos de madeira presos num torno. Embora essas técnicas nos pareçam cruéis, temos de nos lembrar que Rush estava tentando ajudar os doentes mentais em vez de jogá-los em instituições de custódia em que as suas necessidades seriam ignoradas. Ele reconhecia que seus pacientes estavam doentes e fundou o primeiro hospital norte-americano destinado especificamente ao tratamento de distúrbios emocionais. No decorrer do século XIX, havia duas principais escolas de pensamento em psiquiatria — a somática e a psíquica. A escola somática afirmava que o comportamento anormal tem causas físicas, como lesões cerebrais, subestimulação dos nervos ou nervos demasiado contraídos. A escola psíquica recorria a explicações mentais ou psicológicas. De modo geral, a psiquiatria oitocentista foi dominada pela escola somática, uma concepção que recebera com cinerável apoio, no século precedente, de Immanuel Kant, que zombava da ideia de que emoções pudessem causar doenças mentais. A psicanálise se desenvolveu como um aspecto da revolta contra essa orientação somática. À medida que o trabalho com os doentes mentais progredia, alguns cientistas se convenciam de que os factores emocionais tinham muito mais importância do que lesões cerebrais ou outras possíveis causas físicas. A hipnose teve seu papel na promoção do interesse pelas causas psíquicas do comportamento anormal. Na última parte do século XVIII, o fenómeno da hipnose foi levado à atenção da profissão médica pelo médico austríaco Franz Anton Mesmer (1734-1815), mas durante um século foi rejeitado por esses profissionais, que equiparavam o mesmerismo ao charlatanismo. O público, contudo, aceitou a ideia dos estados hipnóticos, fazendo deles uma espécie de jogo de salão. Na Inglaterra, James Braid (1795-1860) denominou o estado hipnótico neuripnologia, do qual o termo hipnose acabou por ser derivado. O cuidadoso trabalho de Braid e o seu desdém por pretensões exageradas deram ao fenómeno um certo grau de respeitabilidade científica. A hipnose alcançou aceitação profissional com o trabalho do médico francês Jean Martin Charcot (1825-1893), chefe da clínica neurológica do Salpêtriére, um hospital parisiense para insaios. Charcot tratara pacientes histéricas por meio da hipnose com algum sucesso. E, o que que é mais importante, descrevera os sintomas da histeria e o uso que fizera da hipnose em termos médicos, tornando-a mais aceitável para outros médicos e para a Academia Francesa de Ciências, que rejeitara por três vezes a ideia do mesmerismo. A aprovação da Academia era vital, pois abriria a porta para a investigação dos aspectos psicológicos das enfermidades mentais. O trabalho de Charcot, contudo, era primordialmente neurológico, enfatizando distúrbios e sintomas físicos como a paralisia. Os médicos continuaram a atribuir a histeria a causas somáticas até 1889, quando o discípulo de Charcot, Pierre Janet (1859-1947), aceitou o convite para ser director do laboratório psicológico no Salpêtrière. Janet rejeitou a opinião de que a histeria fosse um problema físico e a considerou um distúrbjo mental. Ele enfatizou os fenómenos mentais — como deteriorações da memória, ideias fixas e forças inconscientes — como factores causais, preferindo a hipnose como método de tratamento. Assim, nos primeiros anos da carreira de Freud, a literatura publicada sobre a hipnose e sobre as causas psicológicas das doenças mentais estava aumentando. A obra de Janet, em especial, antecipava muitas das ideias de Freud. Em termos pessoais, contudo, Janet mais tarde exprimiu desdém pelo próprio Freud (Abel, 1989). A obra de Charcot e Janet no tratamento dos mentalmente perturbados ajudou a mudar as crenças da psiquiatria, que passaram da escola somática para a escola mental ou psíquica. Os médicos começaram a pensar em termos da cura de disturbios emocionais tratando a mente em vez do corpo. Quando Freud começou a publicar suas ideias, o termo psicoterapia já tinha uso disseminado. A Influência de Darwin Em 1979, Frank J. Sulloway, um notável historiador da ciência, publicou Freud: Biologist of the Mmd (Freud: Biólogo da Mente), em que afirmava que Freud fora muito influenciado pela obra de Charles Darwin. Sulloway apoiou-se em novos dados da história; mais precisamente, ele examinou dados que já existiam há anos, mas que ninguém tinha considerado da mesma maneira. Sulloway examinou os livros da biblioteca pessoal de Freud e descobriu exemplares das obras de Darwin. Freud os lera a todos, fazendo anotações à margem e, pelo que se sabia, os tinha elogiado. Freud admitia que a obra de Darwin, ao lado de um ensaio sobre a natureza escrito pelo poeta alemão Goethe, tinham influenciado sua escolha da medicina como profissão. Além disso, podem-se detectar muitas semelhanças com as ideias de Darwin nos escritos de Freud. Sulloway concluiu que Darwin “provavelmente fez mais do que qualquer outra pessoa para abrir o caminho para Sigmund Freud e a revolução psicanalítica” (Sulloway, 1979, p. 238). Darwin discutiu várias ideias que Freud mais tarde transformou em questões centrais da psicanálise, incluindo processos e conflitos mentais inconscientes, a significação dos sonhos, o simbolismo oculto em sintomas estranhos de comportamento e a importância da excitação sexual. De modo geral, Darwin se concentrou, como Freud mais tarde, em aspectos não racionais do pensamento e do comportamento. As teorias de Darwin também influenciaram o pensamento freudiano sobre o desenvolvimento infantil. Observamos que Darwin deu suas anotações e seu material não publicado a George John Romanes, que mais tarde escreveu dois livros, com base nesse material, sobre a evolução mental dos seres humanos e dos animais. Sulloway encontrou exemplares de livros de Romanes na biblioteca de Freud, bem como comentários manuscritos deste apostos à margem. Romanes desenvolveu a noção darwiniana da continuidade do comportamento emocional da infância à idade adulta, e a sugestão de que o impulso sexual aparece em bebés de até sete semanas de vida. Esses dois temas se tornaram centrais na psicanálise freudiana. Darwin insistia que os seres humanos são impelidos por forças biológicas, particularmente pelo amor e pela fome, que ele acreditava serem o fundamento de todo comportamento. Menos de uma década mais tarde, o psiquiatra alemão Richard von Krafft-Ebing exprimiu a mesma concepção, a de que a autopreservação e a gratificação sexual são os dois únicos instintos da fisiologia humana. Assim, cientistas respeitados que seguiam a linha de Darwin reconheciam o papel do sexo como motivação humana básica. Há outros pontos de semelhança entre as obras de Darwin e Freud. A ênfase freudiana no conflito interior é conceitualmente idêntica ao tema darwiniano da luta pela existência. Freud escreveu que “o indivíduo perece a partir dos seus conflitos interiores, a espécie em sua luta com o mundo exterior ao qual já não está adaptada” (Freud, 1938/1941, p. 299). Em ambos os casos, a luta é com a morte psicológica ou fisiológica. Logo, podemos incluir Darwin como um importante precursor de Freud, que se apoiou em muitos aspectos da teoria evolucionista para desenvolver sua teoria revolucionária da psicanálise. Outras Fontes de Influência: Várias outras influências sobre Freud merecem menção. O clima intelectual dos séculos XVIII e XIX acolhia a doutrina do hedonismo, a proposição de que os seres humanos são motivados para obter prazer e evitar a dor. Associado primordialmente com o filósofo inglês Jeremy Bentham e sua noção de utilitarismo, o hedonismo também era sustentado por alguns associacionistas britânicos. O conceito freudiano do princípio do prazer é sustentado pela doutrina do hedonismo. No decorrer de sua formação universitária, Freud esteve exposto à ideia do mecanicismo, representada pelos fisiologistas CarI Ludwig, Emildu Bois-Reymond, Ernst Brücke e Hermann von Helmholtz. Esses alunos do grande Johannes Müller tinham se unido para assumir a posição de que não se encontram forças nos seres vivos que não existam nos objectos inanimados. Em outras palavras, não há no organismo forças activas além das forças físicas e químicas comuns. Como aluno de Brücke, Freud foi influenciado por essa orientação mecanicista. Mais tarde, ele formularia uma teoria determinista sobre a natureza do comportamento humano que denominou determinismo psíquico. Outro aspecto do Zeitgeist (ideal) que influenciou e reforçou o trabalho de Freud foi a atitude diante do sexo na Viena do final do século passado. Afirma-se que, como a sociedade na época de Freud era muito repressiva e puritana, ele estava muito além do seu tempo ao discutir questões sexuais com tanta franqueza. Embora as inibições sexuais possam ter caracterizado as mulheres neuróticas de classe média alta que foram pacientes de Freud (bem como o próprio Freud), isso não era típico da cultura como um todo. A Viena da virada do século era uma sociedade aberta e permissiva, e essa aceitação generalizada da sensualidade não era acompanhada por sentimentos de culpa nem por repressão. A pesquisa sugere que nem sequer a Inglaterra vitoriana e a América puritana foram de facto caracterizadas pela pudicícia e pelas inibições excessivas que se costumam associar com essas culturas ( Gay, 1983). O interesse pelos assuntos sexuais era visível na vida cotidiana vienense e na literatura científica. Nos anos antes de Freud apresentar sua teoria de fundo sexual, tinham sido publicados muitos estudos sobre patologias sexuais, sexualidade infantil e supressão de impulsos sexuais e seus efeitos sobre a saúde física e mental. Em 1845, o médico alemão Adolf Patze afirmou que o impulso sexual estava presente em crianças já aos três anos, o que foi reiterado em 1867 por Henry Maudsley, um conhecido psiquiatra britânico. Em 1886, Krafft-Ebing publicou seu livro sensacional Psychopathia Sexualis (Psicopatia Sexual). E, em 1897, um médico vienense, Albert MolI, escreveu um livro sobre a sexualidade na criança e sobre o amor da criança pelo genitor do sexo oposto (Steele, 1985). Um colega de Freud em Viena, o neurologista Moritz Benedikt, conseguira curas dramáticas com histéricas ao fazê-las falar sobre seus problemas com a vida sexual. O psicólogo francês Alfred Binet publicara trabalhos sobre perversões sexuais no final dos anos 1880 e no início dos anos 1890. Até a palavra libido, que tanta importância assumiria na psicanálise, já estava em uso e com o mesmo sentido dado por Freud. Assim, boa parte do componente sexual do seu trabalho fora antecipado de uma ou de outra forma. Como o Zeitgeist(ideal) profissional e público já era receptivo, as ideias de Freud foram objeto de grande atenção. O conceito de catarse também era popular antes de Freud publicar qualquer obra. Em 1880, um ano antes de Freud receber seu diploma de médico, um tio de sua futura esposa escreveu um livro sobre o conceito aristotélico de catarse. Seguiu-se uma “mania pela questão da catarse... Por um certo tempo, a catarse era um dos assuntos mais discutidos entre os estudiosos e um dos tópicos de conversa nos sofisticados salões vienenses” (Ellenberger, 1972, p. 272). Por volta de 1890, havia mais de 140 publicações em alemão sobre o tópico (Sulioway, 1979). Por fim, muitas ideias de Freud acerca dos sonhos tinham sido antecipadas na literatura filosófica e fisiológica já no século XVII. Houve muitas e diversificadas influências sobre o pensamento de Freud. Grande parte da sua genialidade, e da de todos os fundadores, foi a capacidade de recorrer a essas várias ideias e, a partir delas, desenvolver um sistema coerente. Sigmund Freud (1 856-1 939) e o Desenvolvimento da Psicanálise O movimento psicanalítico que Sigmund Freud desenvolveu tem íntimas relações com a sua própria vida e é, em larga medida, autobiográfico. Em consequência, conhecer a história de sua vida é fundamental para a compreensão do seu sistema. Freud nasceu a 6 de Maio de 1856 em Freiberg, Morávia (actualmente Prior, na antiga Checoslováquia). Em 1990, a cidade deu à sua Praça Stálin o nome de Praça Freud. O pai de Freud era um comerciante de lãs relativamente mal sucedido que, quando os seus negócios fracassaram na Morávia, se mudou com a família para Leipzig e, mais tarde, quando Freud tinha quatro anos, para Viena. Freud permaneceu ali por quase oitenta anos. O pai de Freud, vinte anos mais velho que a esposa, era rigoroso e autoritario. Quando jovem, Freud sentia medo e amor pelo pai. Sua mãe era protectora e amorosa, e ele tinha por ela um apego apaixonado. Esse medo do pai e a atracção sexual pela mãe formam o que Freud mais tarde denominou complexo de Édipo — que parece ter sido derivado de suas experiências e lembranças da meninice. Um entre oito filhos, Freud cedo demonstrou grande capacidade intelectual, que a família tudo fez para encorajar. Seu quarto era o único da casa que tinha uma luz de azeite, o que era uma iluminação melhor para o estudo do que as velas usadas pelos outros. As outras crianças, pelas quais Freud demonstrava considerável ressentimento, não podiam estudar música para que sua prática não perturbasse o jovem estudioso. Freud ingressou no Liceu um ano antes do que era comum; considerado um aluno brilhante, graduou-se com distinção aos dezessete anos. Indeciso sobre sua carreira, tinha como interesses a civilização, a cultura humana, as relações humanas e a história militar. A teoria da evolução de Darwin fê-lo interessar-se pela abordagem científica do conhecimento, e Freud, com alguma hesitação, resolveu estudar medicina. Ele não desejava ser médico clínico mas esperava que o diploma o levasse a uma carreira de pesquisa científica. Iniciou seus estudos na Universidade de Viena em 1873. Como queria estudar vários assuntos sem vínculo directo com seu treinamento médico (por exemplo, fez cinco cursos de filosofia com Franz Brentano), levou oito anos para obter o grau. No início, Freud se concentrou na biologia; dissecou mais de quatrocentas enguias macho para determinar a estrutura dos testículos. Suas descobertas foram inconclusivas, mas é digno de nota que seu primeiro esforço de pesquisa se relacionasse com sexo. Ele passou para a fisiologia e trabalhou com a medula espinhal do peixe. Ao que parece, gostava do assunto, pois levou seis anos trabalhando com um microscópio no instituto fisiológico de Ernst Brücke. Durante seu treinarnento médico, Freud fez experiências com a cocaína. Usou-a, ofereceu a sua noiva, às suas irmãs e aos seus amigos, sendo responsável pela introdução da substcia na prática médica. Entusiasmado com ela, descobriu que a cocaína curava sua depressão e ajudava sua indigestão quase crônica. Freud estava convencido de ter encontrado uma droga milagrosa que curaria da ciática ao enjôo marítimo, e lhe daria a fama e o reconhecimento por que ansiava. Mas isso não iria acontecer. Um dos colegas médicos de Freud, depois de ouvir suas conversas casuais sobre a droga, fez suas próprias experiências e descobriu que a cocaina podia ser usada para anestesiar o olho humano, possibilitando pela primeira vez a cirurgia ocular. Freud publicou seu artigo sobre os usos benéficos da cocaína em 1884, sendo esse trabalho considerado parcialmente responsável pela epidemia do uso de cocaína que varreu a Europa e os Estados Unidos, durando até quase toda a década de 20. Freud foi criticado por defender o uso da cocaína fora da cirurgia do olho e por se desencadear essa peste no mundo. Pelo resto da vida, ele tentou deliberadamente apagar toda a ma imagem- O movimento psicanalftico fundado por Sigmund Freud tem tido uma profunda influência sobre a psicologia moderna, bem como sobre muitos aspectos da cultura ocidental, lembrança do seu endosso à cocaína, chegando a omitir referências ao seu trabalho em sua própria bibliografia. Por muitos anos, acreditava-se que Freud parara de usar a cocaína dos dias da escola médica, mas dados recém-descobertos da história, na forma de suas próprias cartas, revelam que ele usou a droga por ao menos mais dez anos, até a meia-idade (Masson, 1985). Freud queria prosseguir com o estudo científico num ambiente académico, mas Brücke o desestimulou devido às suas circunstâncias fmanceiras. Freud era pobre demais para se manter durante os muitos anos que teria de esperar para garantir um dos poucos cargos de professor universitário disponíveis. Com relutância, concordou com Brücke, decidindo fazer os exames e praticar a medicina. Isso o obrigou a trabalhos adicionais em clínicas e hospitais, pois deixara de lado o aspecto clínico de sua educação médica em favor da pesquisa fisiológica. Durante seu treinamento hospitalar, ele se especializou na anatomia e nas doenças orgânicas do sistema nervoso, particularmente a paralisia, a afasia, as lesões cerebrais em crianças e a patologia da fala. Freud se formou em 1881 e no ano seguinte começou a praticar a neurologia clínica. A prática médica não era mais atraente do que ele esperara, mas as realidades económicas prevaleceram. Ele era noivo de Martha Bernays, que também não tinha dinheiro, e eles tinham adiado o casamento várias vezes por razões financeiras. Por fim, depois de um frustrante compromisso de quatro anos, eles se casaram, mas Freud teve de tomar dinheiro emprestado e empenhar os relógios. Sua situação acabou por melhorar, mas Freud nunca se esqueceu desses primeiros anos de pobreza. As longas horas de trabalho a que se dedicava impediam Freud de passar muito tempo com a esposa e os filhos (que viriam a ser seis). Ele passava as férias sozinho ou com a cunhada, porque Martha não acompanhava o seu ritmo de caminhada. Durante esses anos, Freud desenvolveu uma importante amizade com o médico Josef Breuer (1842-1925), que alcançara a fama pelo seu estudo da respiração e pela descoberta do funcionamento dos canais auditivos semicirculares. O bem-sucedido e sofisticado Breuer ofereceu ao jovem Freud conselho, amizade e até dinheiro emprestado. Freud o via como uma figura paterna, e Breuer, ao que parece, via Freud como um irmão mais novo e precoce. O intelecto de Freud está alcançando o seu auge”, escreveu Breuer a um amigo. “Eu o contemplo como uma galinha a uma águia” (Hirschmuller, 1989, p. 315). Eles discutiam frequentemente sobre os pacientes de Breuer, incluindo Anna, cujo caso seria vital para o desenvolvimento da psicanálise. Jovem inteligente e atraente de vinte e um anos, Anna o apresentava uma ampla gama de graves sintomas histéricos, incluindo a paralisia, a perda de memória, a deterioração mental, náuseas e distúrbios da visão e da fala. Os sintomas começaram a aparecer enquanto ela cuidava do pai moribundo. Breuer tratou-a inicialmente usando a hipnose. Ele descobriu que, hipnotizada, ela se recordava de experiências específicas que pareciam ter gerado determinados sintomas, e que falar sobre essas experiências em estado hipnótico parecia aliviar os sintomas. Por exemplo, Anna passou por um período em que não conseguia beber água, apesar de uma intensa sede. Sob hipnose, ela relatou uma aversão à água na infância, lembrando-se de ter visto um cão de que ela não gostava bebendo de um copo. Depois que contou o incidente a Breuer, Anna descobriu que podia voltar a beber água — e o sintoma nunca voltou. Breuer atendeu Anna diariamente por mais de um ano. Em suas consultas, Anna contava os incidentes perturbadores do dia e, depois disso, com frequência se sentia aliviada dos sintomas. Ela se referia às conversas com Breuer pelos termos “limpeza de chaminé” e “cura falada”. À medida que o tratamento continuava, Breuer percebeu — e contou a Freud — que os incidentes recordados por Anna sob hipnose envolviam algum pensamento ou evento que ela considerava repulsivo. Revivendo a experiência perturbadora sob hipnose, ela tinha os sintomas reduzidos ou eliminados. A esposa de Breuer teve ciúmes do estreito relacionamento emocional desenvolvido entre ele e Anna que apresentava o que Breuer mais tarde denominou transferência positiva, isto é, ela transferiu seus sentimentos pelo pai para o médico. Essa transferência teve a ajuda da grande semelhança física entre o pai e o médico. Breuer também deve ter sentido um apego emocional pela paciente; “seus jovens atrativos, sua encantadora impotência e o seu próprio nome... redespertaram em Breuer seus anseios edípicos adormecidos pela sua própria mãe” (Gay, 1988, p. 68). Breuer finalmente percebeu a situação como uma ameaça e disse a Anna que não poderia mais tratá-la. Poucas horas depois, Anna sentiu os sintomas do parto histérico. Breuer encerrou esse evento com a hipnose e, de acordo com a lenda, foi com a esposa para uma segunda lua-de-mel em Veneza, quando ela ficou grávida. Essa história é um mito perpetuado por várias gerações de psicanalistas e historiadores, fornecendo outro exemplo das distorções que podem ocorrer com os dados da história. Nesse caso, o mito persistiu por quase cem anos. Breuer e sua esposa podem de facto ter ido a Veneza, mas as datas de nascimento dos seus filhos revelam que nenhum poderia ter sido concebido durante essa viagem (Ellenberger, 1972). Na verdade, boa parte da história de Anna parece ter mais ficção do que factos, particularmente sua cura pelos tratamentos catárticos de Breuer. Depois que este interrompeu o seu tratamento, ela foi internada por algum tempo, e passava horas sentada diante de um retrato do pai, falando incessantemente em visitar o seu túmulo. Breuer disse a Freud que ela estava “perturbada” e exprimiu a esperança de que ela morresse para terminar seu sofrimento. Mais tarde, Anna veio a ser uma feminista e assistente social na Alemanha. Ela nunca falou de suas experiências com Breuer e manteve uma atitude negativa com respeito à psicanálise pelo resto da vida (Freeman, 1972). O relato desse caso por Breuer é importante para o desenvolvimento da psicanálise, pois introduziu a Freud o método da catarse, a cura falada, que viria depois a merecer tanto destaque em sua obra. Em 1885, Freud recebeu uma pequena bolsa de pós-graduação que lhe permitiu passar alguns meses estudando em Paris com Jean Martin Charcot. Certa noite, numa recepção, Freud ouviu Charcot asseverar que as dificuldades de um paciente tinham base sexual. Mas nesse tipo de caso é sempre uma questão de genitais — sempre, sempre, sempre” (Freud, 1914, p. 14). Para Freud, essa avaliação foi uma percepção iluminadora e estimulante. A partir disso, ele ficou alerta para a sugestão de problemas sexuais em seus clientes. Ele teve a oportunidade de observar Charcot usar a hipnose no tratamento da histeria. Charcot demonstrara que a concepção tradicional da histeria como uma moléstia exclusivamente feminina (a palavra vem do grego hystera, que significa útero) era incorreta; ele provara a existência de sintomas histéricos em alguns dos seus pacientes homens. Um ano depois de voltar de Paris, Freud foi recordado outra vez da possível base sexual dos distúrbios emocionais. Um destacado ginecologista pediu a Freud para se encarregar do caso de uma paciente que tinha ataques de ansiedade cujo alívio só ocorria se soubesse onde o seu médico estava naquele momento. O médico disse a Freud que a ansiedade era causada pelo marido impotente da mulher; seu casamento não fora consumado depois de dezoito anos. “A única prescrição para essa moléstia”, disse ele a Freud, “é muito conhecida de nós, mas não podemos prescrevê-la. Ela é: Penis norinalis dosim repetatur!” (Freud, 1914). Freud adotava os métodos de Breuer, a hipnose e a catarse, no tratamento de seus pacientes, mas pouco a pouco foi ficando insatisfeito com a hipnose. Embora aparentemente bem sucedida em aliviar ou eliminar sintomas, ela não parecia capaz de curar. Muitos pacientes voltavam com queixas de um novo grupo de sintomas. Além disso, Freud descobriu que alguns pacientes neuróticos não eram fácil ou profundamente hipnotizáveis. Esses e outros problemas o levaram a abandonar a técnica, mas ele manteve a catarse como método de tratamento, tendo desenvolvido a partir dela o que tem sido considerado a técnica mais significativa na evolução da psicanálise: a livre associação. Freud queria dizer, em alemão, livre intrusão ou invasão, e não livre associação. Nessa técnica, o paciente deita num divã e é encorajado a falar aberta e espontaneamente, dando completa expressão a qualquer ideia, por mais embaraçosa, irrelevante ou tola que pareça. O objectivo da psicanálise freudiana é trazer à percepção consciente lembranças ou pensamentos reprimidos, que ele supunha ser a fonte do comportamento anormal do paciente. Ele acreditava que não havia nada de aleatório no material revelado durante a livre associação, e que esse material não estava sujeito à escolha consciente do paciente. A informação revelada era predeterminada, forçada a entrar em sua consciência ou a invadi-la pela natureza dos seus conflitos. Mediante a livre associação, Freud descobriu que as lembranças do paciente iam invariavelmente à infância, e que muitas das experiências reprimidas de que o paciente se recorda tinham relação com questões sexuais. Já sensível ao possível papel dos factores sexuais na etiologia das doenças, e tendo conhecimento da literatura profissional corrente sobre a patologia sexual, Freud voltou sua atenção para o material de cunho sexual revelado nas narrativas dos pacientes. Em 1895, Freud e Breuer publicaram Estudos Sobre Histeria, considerado por muitos o marco do inicio formal da psicanálise. O livro continha um artigo conjunto já publicado; cinco históricos de caso, incluindo o de Anna .; um artigo teórico de Breuer; e um capítulo sobre psicoterapia escrito por Freud. Embora tenha recebido capítulo sobre psicoterapia escrito por Freud. Embora tenha recebido algumas críticas negativas, a obra foi elogiada em revistas científicas e literárias de toda a Europa e considerada uma valiosa contribuição ao campo. Foi um começo defmido, embora modesto, do reconhecimento que Freud desejava. Breuer, no entanto, refutara em publicar o livro. Eles discutiram sobre a ideia de Freud de que o sexo era a unica causa da neurose. Breuer aceitava a importância dos fatores sexuais, mas não estava convencido de que fossem a única causa. Ele sugeriu que Freud não tinha provas suficientes em que basear sua conclusão. A decisão de publicar o livro mesmo assim levou a um estremecimento de sua amizade. Freud estava persuadido do seu acerto e de que não era preciso acumular dados adicionais para sustentar sua posição. Pode ser que ele não quisesse esperar mais documentação porque um retardamento poderia permitir que alguém publicasse a ideia e reivindicasse prioridade. Sua ambição pelo sucesso e pela fama pode ter assumido precedência sobre a cautela científica para que ele corresse a imprimir o livro com evidências insuficientes. Sua atitude dogmática com relação a seu trabalho perturbou Breuer e, dentro de poucos anos, o rompimento entre eles era completo. Freud ficara amargurado com o homem que tanto fizera por ele, chegando a dizer a um amigo que o simples facto de ver Breuer fazia-o querer deixar o país. À época da morte de Breuer, em 1925, esses sentimentos parecem ter se suavizado. Ele escreveu um obituário sensível para Breuer, no qual reconhecia as realizações do seu mentor. Também enviou uma carta de condolências ao filho de Breuer, referindo-se ao “magnífico papel desempenhado pelo seu falecido pai na criação da nossa nova ciência” (Hirschmuller, 1989, p. 321). Na metade dos anos 1890, a convicção de Freud de que o sexo tinha o papel deterninante na neurose estava firme. Ele observara que a maioria dos seus pacientes relatava experiências sexuais traumáticas na infância, com frequência envolvendo membros da família. Ele também passou a acreditar que não era possível a neurose se desenvolver numa pessoa que tivesse uma vida sexual normal. Num artigo apresentado à Sociedade de Psiquiatria e Neurologia de Viena em 1896, Freud relatou que seus pacientes tinham revelado experiências semelhantes à sedução na infância, sendo o sedutor, de modo geral, um parente mais velho, mais frequentemente o pai. Hoje, essas experiências são claramente rotuladas de abuso infantil. Esses traumas de sedução, acreditava Freud, eram a causa do comportamento neurótico dos adultos. Ele também contou que seus pacientes hesitavam em descrever detalhes da experiência de sedução e que os eventos pareciam um tanto irreais. Os pacientes falavam de um modo que sugeria não se lembrarem absolutamente das experiências, quase como se elas nunca tivessem ocorrido de facto. O artigo foi recebido com cepticismo. O presidente do grupo, Krafft-Ebing, disse que ele parecia “um conto de fadas científico” (Jones, 1953, p. 263). Freud replicou que seus críticos eram ignorantes e que podiam ir todos para o inferno. Cerca de um ano depois, Freud mudou de posição, alegando que, na maioria dos casos, as experiências de sedução infantil descritas pelos pacientes nunca tinham ocorrido de facto. Isso marca outra mutação na história da psicanálise. No início, a consciência de que alguns dos pacientes relatavam fantasias foi um golpe para Freud, porque sua teoria da neurose se baseava na crença de que os traumas sexuais infantis eram reais. Reflectindo, porém, ele concluiu que essas fantasias eram bem reais para os pacientes. E, como as fantasias tinham o sexo como centro, este permanecia na raiz dos seus problemas. Assim, Freud pôde preservar a tese básica do sexo como a causa da neurose. Quase um século depois, em 1984, surgiu uma controvérsia quando um psicanalista que dirigira por algum tempo os Arquivos Freud, Jeffrey Masson, acusou Freud de estar mentindo sobre a realidade das experiências sexuais infantis dos pacientes. Masson alegou que a maioria dos abusos sexuais relatados por pacientes de Freud tinha de facto ocorrido e que Freud decidira considerá-los fantasias apenas para tornar seu sistema mais aceitável para os colegas e o público (Masson, 1984). A maioria dos estudiosos respeitados contestou as afirmações de Masson, alegando que ele não apresentou provas convincentes ( Gay, 1988; Krüll, 1986; Malcoim, 1984). A disputa mereceu ampla publicidade em jornais e revistas. Numa entrevista ao Washington Post (19 de fevereiro de 1984), os freudianos Paul Roazen e Peter Gay descreveram a teoria de Masson como “um embuste”, “uma grave calúnia” e “uma severa distorção da história da psicanálise”. Deve-se notar que Freud nunca abandonara a sua crença de que o abuso sexual infantil tinha por vezes ocorrido; o que ele negara fora sua concepção anterior de que essas experiências sempre tinham ocorrido; ele tinha afirmado que esse abuso infantil tão disseminado dificilmente merecia crédito. Afinal, quem poderia acreditar que tantos pais e tios abusavam sexualmente de menininhas? Contudo, evidências mais recentes indicam que o abuso sexual infantil é mais comum do que se costumava pensar, levando os pesquisadores a sugerir que a concepção freudiana original da teoria da sedução pode ter sido a correcta. Não sabemos se Freud suprimiu deliberadamente a verdade, como diz Masson, ou acreditou genuinamente que seus pacientes relatavam apenas fantasias. Entretanto, é possível sugerir que “o número de pacientes de Freud que estavam contando a verdade sobre suas experiências infantis era maior do que ele estava preparado para acreditar” (Crewsdon, 1988, p. 41). A essa mesma conclusão chegara, nos anos 30, o discípulo de Freud, Sandor Ferenczi. Com base nos relatos de seus pacientes, Ferenczi concluíra que o complexo de Édipo resultava de atos reais de abuso sexual, e não de fantasias. Quando Ferenczi ia apresentar suas ideias num congresso psicanalítico em 1932, Freud tentou impedi-lo de ler o artigo. Como isso fracassasse, Freud liderou uma vigorosa oposição à alegação do seu aluno. Também se sugeriu que Freud modificou a teoria da sedução porque percebeu que, se isso fosse verdade, todos os pais, incluindo o seu, seriam culpados de atos perversos contra os filhos (Krüll, 1986). Seja qual for o julgamento final da teoria da sedução, está claro que Freud, que acentuava o papel do sexo na vida emocional, tinha uma atitude negativa diante do sexo em geral e passara ele mesmo por dificuldades sexuais. Ele escrevera sobre os perigos da sexualidade, mesmo para pessoas não neuróticas, alegando que devíamos nos empenhar para nos elevar acima dessa ‘necessidade animal comum”. Ele considerava o ato sexual degradante, tendo afirmado que contaminava a mente e o corpo. Em 1897, quando tinha quarenta e um anos, Freud contou que, pessoalmente, desistira do sexo, escrevendo a um amigo que “a excitação sexual já não tem nenhuma utilidade para uma pessoa como eu” (Freud, 1954, p. 227). Freud passara por experiências esporádicas de impotência e, por alguns períodos, se absteve do sexo devido ao seu declarado horror pelos preservativos e pelo coito interrompido, os métodos- padrão de controle da natalidade da época. No mesmo ano em que decidiu abandonar o sexo, Freud começou a monumental tarefa de auto-análise. Por vários anos, ele tivera algumas dificuldades neuróticas, tendo diagnostica do sua condição como neurose de ansiedade, que atribuiu ao acúmulo de tensão sexual. Essa foi uma época de um intenso tumulto interior para Freud, mas, ao mesmo tempo, um dos seus períodos mais criativos. Ele empreendeu a tarefa de auto-análise como um recurso para melhor compreender a si mesmo e aos seus pacientes; para isso, empregou o método da análise de sonhos. No curso do seu trabalho, Freud descobrirà que os sonhos do paciente poderiam ser uma rica fonte de material emocional significativo. Os sonhos com frequência continham indícios que remetiam às causas subjacentes de um distúrbio. Devido à sua crença positivista de que tudo tinha uma causa, ele achava que os eventos de um sonho não poderiam ser completamente sem sentido, mas resultar de algum elemento presente no inconsciente. Percebendo que não podia analisar a si mesmo com a técnica da livre associação (pois era difícil assumir os papéis de paciente e terapeuta ao mesmo tempo), Freud decidiu analisar seus sonhos. Ao despertar toda manhã, ele anotava o material onírico da noite e fazia livres associações com ele. Essa auto-análise durou uns dois anos, culminando com a publicação de A interpretação dos Sonhos (1900), livro hoje considerado sua principal obra. Nele, Freud esboçou pela primeira vez a natureza do complexo de Édipo, apoiando-se amplamente em suas próprias experiências infantis. O livro não foi elogiado por todos, mas atraiu muito reconhecimento e comentários favoráveis. Revistas profissionais de campos tão diversos quanto a filosofia e a neuropsiquiatria o analisaram, bem como revistas e jornais populares de Viena, Berlim e outras cidades europeias importantes. Em Zurique, Suíça, um jovem chamado Carll Jung leu o livro e logo se converteu à nova psicanálise — ao menos por algum tempo. No fmal, A Interpretação dos Sonhos teve tanto sucesso que mereceu oito edições durante a vida de Freud. Ele incorporou a análise de sonhos ao corpo de técnicas que usava em psicanálise e, dali por diante, dedicava ao menos meia hora por dia à auto-análise. Nos anos produtivos posteriores a 1900, Freud desenvolveu e expandiu suas ideias. Em 1901, publicou Psicopatologia da Vida Cotidiana, que contém uma descrição do hoje famoso lapso freudiano. Freud sugeria que, no comportamento cotidiano da pessoa normal, bem como nos sintomas neuróticos, ideias inconscientes lutam por expressão e são capazes de modificar o pensamento e a acção. O que poderiam parecer lapsos linguísticos ou actos de esquecimento casuais eram, na realidade, reflexos de motivos reais, embora não reconhecidos. Seu livro seguinte, Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade, apareceu em 1905. Três anos antes, alguns alunos lhe pediram para coordenar um grupo semanal de discussão para que pudessem aprender psicanálise. Esses discípulos, incluindo Alfred Adler e Carl Jung, mais tarde alcançaram fama através de sua oposição a Freud; este, como vimos ocorrer com Breuer, não tolerava discussões sobre a sua ênfase quanto ao papel da sexualidade. Quem não aceitasse ou tentasse modificar esse pilar era excomungado. Freud escreveu: “A psicanálise é criação minha; durante dez anos, fui a única pessoa que se interessou por ela... Ninguém pode saber melhor do que eu o que é a psicanálise” (Freud, 1914, p. 7). Na primeira década do século XX, a situação pessoal e profissional de Freud teve uma pronunciada melhoria. Sua prática privada aumentou e um crescente número de pessoas passou a levar a sério seus pronunciamentos. Em 1909, ele recebeu um sinal de reconhecimento internacional quando foi convidado, ao lado de Jung, por G. Stanley Hall, para falar na celebração do vigésimo aniversário da Universidade Clark, em Massachusetts. Freud recebeu um doutorado honorário em psicologia. Achou a experiência profundamente comovente e conheceu muitos psicólogos americanos importantes, incluindo William James, E. B. Titchener e James McKeen Cattell. As cinco palestras que Freud fez em Clark foram publicadas na American Journal of Psychology e traduzidas para várias línguas (Freud, 1909/ 1910). Poucos meses depois das cerimónias em Clark, a reunião anual da APA dedicou uma sessão de três horas à discussão da obra de Freud, prova do impacto de sua ida aos Estados Unidos. Embora tenha sido acolhido e recebido com honras em sua visita, Freud ficou com uma impressão desfavorável dos Estados Unidos, um sentimento que alimentou por muitos anos. Queixou-se da qualidade da culinária americana, da escassez de banheiros, das dificuldades com a língua e da informalidade dos costumes. Ele ficou ofendido quando um guia nas cataratas do Niagara referiu-se a ele como o velhote”. Nunca mais voltou lá e disse ao seu biógrafo, Ernst Jones, que “a América é um equívoco; um equívoco gigantesco, é verdade, mas mesmo assim um equívoco” (Jones, 1955, p. 60). Para sermos justos, é preciso observar que Freud também dizia não gostar de Viena, a cidade em que viveu por tantos anos. Foi pouco depois disso que a família psicanalítica oficial foi dividida pela discórdia, pela dissidência e por defecções. O rompimento com Alfred Adier ocorreu em 1911 e, com Carll Jung — a quem Freud considerava filho espiritual e herdeiro do sistema psicanalítico —, em 1914. Freud queixou-se amargamente dessas defecções. Num jantar com a família, lamentou sua incapacidade de conservar a lealdade daqueles que um dia tinham sido tão fiéis a ele e à sua causa. “O problema com você, Sigi”, observou sua tia, “é que você simplesmente não compreende as pessoas” (Hilgard, 1987, p. 641). Quando da eclosão da Primeira Guerra, havia três facções rivais, mas Freud conservou o nome psicanálise para o seu grupo. Os anos de guerra impediram o progresso do seu sistema, reduzindo o número de seus pacientes e, portanto, sua renda. Com uma esposa, seis filhos e uma cunhada para sustentar, ele estava muito preocupado com as questões financeiras. Freud alcançou o auge da fama entre 1919 e 1939, e continuou a escrever, a atender vários pacientes por dia e tirava três meses de férias todo verão. Por volta da década de 20, a psicanálise tinha evoluído como sistema teórico que propunha uma compreensão de toda motivação e personalidade humanas, e não apenas como um método de tratamento de pessoas perturbadas. Em 1923, descobriu-se que Freud tinha câncer na boca. Nos dezesseis anos seguintes, ele sofreu uma dor quase contínua e se submeteu a trinta e três operações; foram removidas porções do seu palato e do maxilar superior. Recebeu tratamento de raios X e de radioterapia, sendo submetido também a uma vasectomia, que, segundo alguns médicos acreditavam, reverteria o desenvolvimento do câncer. O aparelho bucal que as operações o obrigaram a usar prejudicava sua fala, tornando-se cada vez mais difícil compreender o que ele dizia. Embora continuasse a ver os pacientes e discípulos, ele evitava outros contatos pessoais. Freud permaneceu, depois do diagnóstico de sua doença, fumando seus vinte charutos por dia. O escritor contemporâneo Anthony Burgess descreveu no New York Tirnes de 7 de outubro de 1984 sua visita à casa de Freud em Viena, hoje um museu. Com a chegada de Adolf Hitler ao poder em 1933, a oposição nazista oficial sobre a psicanálise ficou clara — livros de Freud foram queimados publicamente em Maio daquele ano, numa fogueira em Berlim. Enquanto os volumes eram atirados ao fogo, um nazista gritava: “Contra a supervalorização da vida sexual, destruidora da alma — e em nome da nobreza da alma humana — ofereço às chamas os escritos de um certo Sigmund Freud!” (Schur, 1972, p. 446). Freud comentou: “Estamos progredindo. Na Idade Média, eles teriam me queimado; hoje em dia, contentam-se em queimar meus livros” (Jones, 1957, p. 182). Por volta de 1934, os analistas judeus mais visados tinham deixado a Alemanha. A vigorosa campanha nazista para erradicar a psicanálise do país foi tão eficaz que o conhecimento de Freud, antes tão disseminado, fora praticamente obliterado. Um aluno do Instituto de Pesquisa Psicológica e Psicoterapia, instalado pelos nazistas em Berlim, relembra que ‘o nome de Freud nunca era mencionado, e seus livros eram mantidos numa estante fechada” (New York Titnes, 3 de julho de 1984). Quase cinquenta anos depois da guerra, ainda não se encontram na Alemanha muitos livros importantes sobre a psicanálise. Contrariando o conselho de amigos, Freud insistiu em permanecer em Viena. Em março de 1938, a Alemanha invadiu a Áustria e, no dia 15, sua casa foi saqueada por um bando de nazistas. Uma semana depois, sua filha Anna foi presa e detida por um dia. Freud se convenceu de que devia fugir. Em parte graças à intervenção do embaixador americano na França, os nazistas permitiram que Freud fosse para a Inglaterra. Quatro de suas irmãs morreram em campos de concentração nazistas. Para garantir um visto de saída, Freud teve de assinar um documento atestando o tratamento respeitoso e cortês da Gestapo e observando não ter razões para queixas. Ele assinou o formulário e acrescentou o comentário sarcástico: “Posso recomendar calorosamente a Gestapo a qualquer pessoa” (Jones, 1957, p. 226). Embora bem recebido na Inglaterra, Freud não pôde aproveitar o último ano de sua vida por causa da doença. “É trágico”, disse ele, “quando um homem sobrevive ao seu corpo” (Time, 10 de abril de 1939). Ele permaneceu lúcido e trabalhou quase até o fim. Alguns anos antes, quando escolhera Max Schur como médico pessoal, Freud fizera que ele prometesse que não o deixaria sofrer desnecessariamente. Em 21 de Setembro de 1939, Freud recordou o médico de sua promessa. “Você me prometeu não me abandonar quando a minha hora chegasse. Agora, só me resta a tortura, algo que já não faz sentido” (Schur, 1972, p. 529). Schur deu a Freud três injeções de morfina num período de vinte e quatro horas, encerrando os muitos anos de sofrimento por que ele passara. A Psicanálise como Método de Tratamento Freud descobriu que o método da livre associação nem sempre funcionava livremente. Cedo ou tarde, os pacientes alcançavam um ponto em que não podiam ou não queriam continuar. Ele acreditava que essas resistências indicavam que o paciente tinha evocado na percepção consciente lembranças ou ideias demasiado horríveis, vergonhosas ou repulsivas para serem enfrentadas. Freud pensava que a resistência é uma forma de proteção contra o sofrimento emocional e que a presença da dor indica que a análise está se aproximando da fonte do problema. Assim, ele supôs que a resistência indicava que o tratamento seguia a direção correta e que o analista devia continuar a explorar essa área. Freud enfatizava muito que se ajudassem os pacientes a vencer essas resistências. Ele insistia que eles deviam enfrentar as experiências ocultas, por mais perturbadoras, e vê-las à luz da realidade. Esperava-se que, no curso de uma análise completa, se encontrassem e se vencessem resistências algumas vezes. A noção de resistência levou Freud a formular o princípio psicanalítico fundamental da repressão, o processo de ejetar ou excluir ideias, lembranças ou desejos inaceitáveis da percepção consciente, permitindo-lhes operar no inconsciente. Para ele, a repressão era a única explicação adequada para a ocorrência de resistências. Ideias ou impulsos desagradáveis são expulsos da consciência e mantidos à força fora dela. O terapeuta deve ajudar os pacientes a trazer esse material reprimido de volta à consciência, para que possam enfrentá-lo e aprender a conviver com ele. (Alguns pesquisadores sugeriram que Freud desenvolveu os conceitos de resistência e repressão a partir da obra do filósofo alemão Arthur Schopenhauer. Freud disse que não tinha lido suas obras, mas reconheceu sua precedência.). Freud admitia que o trabalho eficaz com pacientes neuróticos depende do desenvolvimento de uma relação pessoal íntima entre paciente e terapeuta. Notamos antes que a transferência que Anna desenvolveu em relação a Breuer o perturbou tanto que ele encerrou seu tratamento. Freud considerava essa transferência das atitudes emocionais do paciente dos genitores para o terapeuta vital e necessária ao processo terapêutico. Um dos alvos da terapia era emancipar os pacientes de sua dependência infantil e ajudá-los a assumir um papel mais adulto. Observamos o reconhecimento dado por Freud à importância do material onírico na sua própria auto-análise. Ele acreditava que os sonhos representam uma satisfação disfarçada de desejos e anseios reprimidos e que a história onírica é muito mais significativa e complexa do que pode parecer. Conta-se que numa noite de quarta-feira, no dia 24 de julho de 1895, sentado a uma mesa do lado nordeste do terraço do restaurante Believue, em Viena, Freud percebeu que a essência do sonho é a realização de desejos. Seguindo a noção de que o gênio sempre se lisonjeia datando suas próprias inspirações, Freud gracejou dizendo que uma placa deveria ser construída naquele lugar: ‘Aqui foi revelado ao Dr. Sigm. Freud, no dia 24 de julho de 1895, o segredo dos sonhos” (Jones, 1953, p. 354). Os sonhos têm um conteúdo manifesto e um conteúdo latente. O conteúdo manifesto é a história contada quando nos recordamos dos eventos ocorridos no sonho. A verdadeira significação do sonho reside, contudo, no conteúdo latente, que constitui o seu significado oculto ou simbólico. Para interpretar o sentido oculto, o terapeuta deve partir do conteúdo manifesto para o latente, isto é, interpretar o significado simbólico dos eventos que o paciente relata na história onírica. A análise dos sonhos é uma tarefa complexa. Freud acreditava que os desejos proibidos presentes no conteúdo onírico latente se exprimem, no conteúdo manifesto, apenas de forma simbólica ou disfarçada. Embora muitos simbolos que surgem em sonhos só tenham relevância Freud em seu gabinete em Viena, no ano de 1937, cercado pela sua coleção de antiguidades gregas, romanas e egípcias, para a pessoa que relata um sonho particular, há simbolos comuns a todos nós. Freud sugeriu, por exemplo, que jardins, varandas e portas representam o corpo feminino, e flechas de igreja, velas e serpentes, os órgãos genitais masculinos. Sonhos sobre quedas representam a entrega a desejos eróticos, e sonhos com vôo representam um desejo de realização sexual. Freud advertiu que, apesar da universalidade desses simbolos, a interpretação de um sonho particular exige o conhecimento dos conflitos específicos do paciente. Freud também escreveu que nem todos os sonhos têm como causa conflitos emocionais. Alguns surgem de estímulos corriqueiros como a temperatura do aposento, o contato com o parceiro ou comer muito antes de dormir. Por conseguinte, nem todos os sonhos contêm material oculto ou simbolico. Acreditava Freud que um longo e intenso período de terapia era necessário para se efetuar uma cura. Com seus pacientes, ele descobriu que eram necessárias não menos de cinco sessões semanais durante meses ou até anos. Logo, um analista só poderia tratar, tipicamente, de uns poucos pacientes de cada vez. Ele também tinha ideias definidas acerca do treinamento dos terapeutas. Pensava que cada analista deveria passar por análise e por um período mínimo de dois anos de trabalho, sob supervisão, antes de lhe ser permitido tratar de pacientes. Por outro lado, achava que a prática da psicanálise deveria ser uma profissão independente da medicina. Ironicamente, ele previu que, em algum momento futuro, seriam desenvolvidas substâncias químicas para tratar distúrbios emocionais, o que tomaria a prática psicanalítica obsoleta. Apesar do crescente uso da psicanálise como método de tratamento, Freud tinha pouco interesse em seu potencial valor terapêutico. Sua preocupação primordial não era curar pessoas, mas esclarecer a dinâmica que subjaz ao comportamento humano. Ele via a si mesmo mais como cientista do que como terapeuta e considerava suas técnicas de livre associação e análise de sonhos instrumentos de pesquisa para a coleta de dados. O fato de as técnicas também terem aplicações terapêuticas era para ele secundario em relação ao seu uso científico. Talvez devido à sua relativa falta de interesse pelo tratamento de pacientes, ele era descrito como impessoal, indiferente e brusco ao lidar com eles. Ele colocava sua cadeira atrás do divã psicanalítico porque, dizia, não queria que os pacientes o encarassem. Por vezes, adormecia durante sessões analíticas. “Falta-me a paixão de ajudar”, confessou a um amigo (Jones, 1955, p. 446). A paixão de Freud era a pesquisa e a análise dos dados com os quais construiu sua teoria da personalidade. O Método de Pesquisa de Freud O sistema de Freud diferia muito, em conteúdo e metodologia, da psicologia experimental tradicional da época. É difícil reconciliar algumas de suas teorias com seu treinamento científico, particularunente com seus anos de pesquisa fisiológica. Apesar de sua formação, ele não usou métodos experimentais de pesquisa. Embora conhecesse a psicologia experimental, Freud não coletava dados a partir de experiências controladas nem fazia análises quantitativas dos seus resultados. Os dados que coletava e os modos como os interpretava estavam em discrepância com os métodos da psicologia experimental. E tinham de estar, dado o objeto de estudo escolhido por Freud. Ele contou que tinha pouca fé na abordagem experimental. Quando, nos anos 30, um psicólogo americano lhe enviou cópias de artigos sobre experiências que fizera para validar alguns conceitos freudianos, Freud “atirou as cópias sobre a mesa num gesto de impaciente rejeição”. Ele escreveu ao psicólogo que não poderia “atribuir muito valor a essa confirmação” (Rosenzweig, 1985, pp. 171, 173). Contudo, Freud acreditava que o seu trabalho era científico e que as histórias de caso dos seus pacientes forneciam amplo apoio às suas conclusões. Ele sugeria que só psicanalistas que usassem suas técnicas estavam qualificados para julgar o valor científico de suas descobertas. Ele escreveu que o seu sistema tinha como base um “rneio incalculável de observações e experiências, e só alguém que repetiu essas observações em si e nos outros tem condições de chegar a um julgamento pessoal a seu respeito” (Freud, 1940, p. 144). Suas teorias foram derivadas da auto-observação e da observação dos seus pacientes submetidos à psicanálise. Ele usava principalmente as técnicas da livre associação e da análise de sonhos, não vendo obstáculos inerentes à extração de conclusões relevantes e significativas desse material. Quando me impus a tarefa de trazer à luz aquilo que os seres humanos conservam oculto dentro de si, não pelo poder coercivo da hipnose, mas observando o que dizem e o que demonstram, julguei-a mais difícil do que de fato é. Quem tem olhos para ver e ouvidos para ouvir pode se convencer de que não há mortal capaz de guardar um segredo. Mesmo que os lábios silenciem, ele conversa com as pontas dos dedos; a autotraição exala dele por todos os poros. Assim, a tarefa de tomar conscientes os recessos mais ocultos da mente apresenta boas possibilidades de ser realizada (Freud, 1901/1905b, pp. 77-78). As teorias de Freud foram formuladas, revisadas e ampliadas em termos das evidências interpretadas apenas por ele. Sua própria capacidade crítica foi o guia predominante da construção de sua teoria. Ele ignorava as críticas alheias, em particular de pessoas não simpáticas à psicanálise; mesmo comentários de amigos e colegas pouco influenciavam o seu pensamento. Muito raramente ele se dava ao trabalho de responder aos críticos. A psicanálise era seu sistema, e só seu. A Psicanálise como Sistema da Personalidade O sistema teórico de Freud não compreendia os tópicos que costumavam ser incluídos nos compêndios de psicologia da época. Freud explorou áreas que os psicólogos tendiam a ignorar, tais como as forças motivadoras inconscientes, os conflitos entre essas forças e os efeitos desses conflitos sobre o comportamento humano. Os Instintos. Os instintos são os fatores propulsores ou motivadores da dinâmica da personalidade, as forças biológicas que liberam energia mental. Embora a palavra instinto tenha passado a ter uso corrente, ela não transmite o sentido original de Freud. Ele não usava a palavra alemã Instinkt quando se referia aos seres humanos, reservando-a à descrição de impulsos inatos de animais. O termo por ele usado para os seres humanos era Trieb (impulso) melhor traduzido por impulso ou pulsão (Bettelheim, 1982). Os instintos freudianos não são predisposições herdadas, que é o sentido usual de instinto, referindo-se antes a fontes de estimulação no interior do corpo. O seu objetivo é remover ou reduzir a estimulação por meio de alguma atividade como comer, beber ou satisfazer a necessidade sexual. Freud não tentou delimitar o nivel de instintos, mas os agrupou em duas categorias: os instintos de vida e o instinto de morte. Os instintos de vida (eros) incluem a fome, a sede e o sexo, referindo-se à autopreservação e à sobrevivência da espécie. Trata-se das forças criadoras que sustentam a própria vida; a forma de energia mediante a qual eles se manifestam é denominada libido. O instinto de morte (thanatos) é uma força destrutiva. Ela pode ser dirigida para dentro, como ocorre no masoquismo ou no suicídio, ou para fora, como no ódio e na agressão. Freud acreditava que somos impelidos irresistivelmente para a morte e até que o “objetivo de toda vida é a morte” (Freud, 1920, p. 38). Ele reconheceu gradualmente que a hostilidade e a agressão, tanto quanto o sexo, são forças importantes na personalidade. À medida que envelhecia, foi se convencendo de que a agressão podia até ser mais forte do que o sexo como motivação do comportamento humano. Eis outro exemplo da natureza autobiográfica do sistema de Freud. Ele só desenvolveu a noção de instinto de morte, e de sua manifestação exterior como agressão, quando a morte se tornou uma preocupação pessoal — depois que o seu câncer piorou, depois de testemunhar os horrores da guerra e depois que sua filha Sophie morreu aos vinte e seis anos, deixando dois filhos pequenos. Freud ficou arrasado com essa perda e propôs o conceito de instinto de morte menos de três semanas depois. Ele também tomou consciência de uma tendência agressiva no interior de si mesmo. Alguns colegas o descreveram como um bom inimigo, e alguns dos seus escritos, para não falar da contundência e do caráter irrevogável dos seus rompimentos com os dissidentes do movimento psicanalítico, sugerem um alto nível pessoal de agressividade. O conceito freudiano de agressão como força motivadora tem tido melhor aceitação do que a sugestão de um instinto de morte. Um psicanalista escreveu que a ideia de instinto de morte poderia ser “relegada à lata de lixo da história” (Becker, 1973, p. 99). Outro sugeriu que, se Freud era um gênio, a proposição do instinto de morte foi um excelente exemplo de um dia de mau humor de um gênio (Eissler, 1971). Os Aspectos Conscientes e Inconscientes da Personalidade Em suas primeiras obras, Freud exprimiu a crença de que a vida psíquica consiste em duas partes, a consciente e a inconsciente. A parte consciente, qual a porção visível de um iceberg, é pequena e insignificante, representando somente um aspecto superficial da personalidade total. O vasto e poderoso inconsciente contém os instintos que são a força propulsora de todo o comportamento humano. Freud também postulou a existência de um pré-consciente ou anteconsciente. Ao contrário do material no inconsciente, o material préconsciente não foi ativamente reprimido e pode ser trazido com facilidade à consciência. Por exemplo, se a sua mente se desviar das palavras desta página e você começar a pensar em alguma coisa que fez a noite passada, você estará trazendo material do pré-consciente à sua percepção consciente. Freud mais tarde reviu essa distinção simples consciente/inconsciente e introduziu os constructos do id, ego e superego. O id, que corresponde mais ou menos à noção freudiana anterior do inconsciente, é a parte mais primitiva e menos acessível da personalidade. As poderosas forças do id incluem os instintos sexuais e agressivos. “Chamamo-lo de caos, um caldeirão repleto de fervilhantes excitações”, escreveu Freud. E ele acrescentou que o id “não conhece juízos de valor, nem o bem e o mal, nenhuma moralidade” (Freud, 1933, p. 74). O id busca satisfação imediata, sem levar em conta as circunstâncias da realidade objetiva; assim, age de acordo com o que Freud denominou princípio do prazer, que tem relação com a redução da tensão por meio da busca do prazer e da evitação da dor. Observamos que a palavra que Freud usou em alemão para id que significa isso, termo sugerido pelo psicanalista Georg Gtoddeck, que, em 1921, enviou a Freud o manuscrito dos primeiros cinco capítulos de um livro que estava escrevendo, intitulado The Book oflt (O Livro do Isso), Isbister, 1985). Nossa energia psíquica básica ou libido está contida no id e é expressa por meio da redução da tensão. Aumentos na energia libidinal provocam aumento da tensão, que tentamos reduzir a um nível mais tolerável. Para satisfazer as nossas necessidades e manter um nível de tensão confortável, temos de interagir com o mundo real. Quem tem fome, por exemplo, deve procurar comida a fim de descarregar a tensão induzida pela fome. Uma ligação apropriada entre as exigências do id e as circunstâncias da realidade tem, portanto, de ser estabelecida. O ego, que serve de mediador entre o id e o mundo exterior, facilita essa interação. O ego representa aquilo que designamos por razão ou racionalidade, em contraste com as paixões cegas e insistentes do id. Freud denominava o ego ich, traduzido como eu. O id tem exigências impensadas, que não levam em conta a realidade. O ego é cônscio da realidade, percebendo-a e manipulando-a, regulando o id com referência a ela. Ele opera de acordo com o que Freud denominou princípio da realidade, mantendo em suspenso as exigências voltadas para o prazer advindas do id até ser encontrado um objeto apropriado com que satisfazer a necessidade e reduzir ou descarregar a tensão. O ego não existe independentemente do id; com efeito, ele deriva sua força do id. O ego serve para ajudar, e não para atrapalhar o id, estando constantemente empenhado em proporcionar-lhe satisfação. Freud comparou o relacionamento entre ego e id com o que há entre o cavaleiro e o cavalo. O cavalo fornece a energia que é dirigida para o caminho que o cavaleiro deseja percorrer. Contudo, a força do cavalo tem de ser constantemente guiada ou controlada para que ele não derrube o cavaleiro no chão. Do mesmo modo, é preciso orientar e controlar o id para que ele não derrube o ego racional. O terceiro componente da estrutura da personalidade freudiana, o superego, se desenvolve bem cedo na infância, quando são assimiladas as regras de conduta ensinadas pelos pais mediante um sistema de recompensas e punições. Os comportamentos errados (que produzem punição) se tomam parte da consciência da criança, que é uma parte do superego. Comporta mentos corretos (que são recompensados) se tornam parte do ego ideal da criança, a outra parte do superego. Assim, o comportamento infantil é de início governado pelo controle parental, mas uma vez que o superego tenha formado um padrão de conduta, o comportamento é determinado pelo autocontrole. Nesse ponto, as recompensas e punições são administradas pelo próprio indivíduo. O termo de Freud para superego era uma palavra que ele cunhou, über-ich, que significa, literalmente, sobre-eu. O superego representa ‘todas as restrições morais”, afirmou Freud, e é o “defensor de um impulso rumo à perfeição — ele é, em suma, o que se descreve, até onde pudemos apreender psicologicamente, como o lado superior da vida humana” (Freud, 1933, p. 67). É fácil ver que o superego está evidentemente em conflito com o id. Ao contrário do ego, o superego não tenta apenas adiar a satisfação do id; ele tenta inibi-la por completo. Em conseqüência, há um conflito interminável no interior da personalidade humana. O ego está numa posição difícil, pressionado por todos os lados por forças insistentes e opostas. Ele tem de: (1) adiar os anseios incessantes do id, (2) perceber e manipular a realidade para aliviar as tensões das pulsões do id, e (3) lidar com o anseio de perfeição do superego. Um pesquisador freudiano comparou o inconsciente com uma prisão de segurança máxima em que as pulsões do id são como presidiários anti-sociais — alguns presos há anos e outros recém- chegados — que devem ser “tratados com muito rigor e estreitamente vigiados” pelo ego e pelo superego. Contudo, eles “mal estão sob controle e sempre tentam escapar” (Gay, 1988, p. 128). Sempre que o ego é submetido a uma pressão demasiado grande, resulta inevitavelmente a ansiedade. A Ansiedade A ansiedade funciona como uma advertência de que o ego está sendo ameaçado. Freud descreveu três tipos de ansiedade: objetiva (ou real), neurótica e moral. A ansiedade objetiva vem do medo de perigos concretos do mundo real. Os outros dois tipos são derivados dela. A ansiedade neurótica vem do reconhecimento dos perigos potenciais inerentes à gratificação instintual. Não é o temor dos instintos em si, mas o medo da punição suscetível de seguir o comportamento indiscriminado, dominado pelo id. Em outras palavras, a ansiedade é o medo de ser punido por expressar desejos impulsivos. A ansiedade moral advém do medo da nossa própria consciência moral. Quando realiza ou mesmo pensa em realizar algum ato contrário ao conjunto de valores morais da consciência moral, a pessoa pode experimentar culpa ou vergonha. Logo, a ansiedade moral depende de quão desenvolvida é a consciência moral de cada um. O indivíduo menos virtuoso é menos suscetível de vivenciar a ansiedade moral. A ansiedade é uma força indutora de tensão do comportamento humano, motivando o indivíduo a agir para reduzir a tensão. Freud sugeriu que o ego desenvolve algumas defesas protetoras contra a ansiedade — os mecanismos de defesa —, que são negações ou distorções inconscientes da realidade. Por exemplo, no mecanismo da identificação, a pessoa assume os modos, o vestuário ou o modo de falar de alguém que pareça admirável e menos vulnerável às condições que dão origem à ansiedade. No mecanismo de defesa da repressão, as pulsões ou pensamentos provocadores de ansiedade são barrados da percepção consciente. A sublímação envolve a substituição de uma meta que não pode ser satisfeita diretamente por metas socialmente aceitáveis, como ocorre quando se desvia energia sexual dos comportamentos sexuais para empreendimentos artisticamente criadores. Na projeção, a fonte da ansiedade é atribuida a outrem; é o que ocorre quando se diz “ele me odeia” em vez de eu o odeio”. Na formação reativa, a pessoa oculta uma pulsão perturbadora ao convertê-la em seu por exemplo, quando substitui o ódio pelo amor. Com o mecanismo da fixação, o desenvolvimento da pessoa fica bloqueado num estágio mais primitivo, porque o estágio seguinte é fonte de demasiada ansiedade. O mecanismo de defesa da regressão envolve comportamentos que indicam uma reversão a um estágio de desenvolvimento anterior no qual havia maior segurança e menor ansiedade. Freud acreditava que, quando a pessoa não consegue enfrentar adequadamente a ansiedade, esta se toma traumática, reduzindo-a a um estado de impotência infantil. Os Estágios Psicossexuais do Desenvolvimento da Personalidade Freud estava convencido de que os distúrbios neuróticos manifestos pelos seus pacientes tinham origem em experiências da infância. Por conseguinte, ele veio a ser um dos primeiros teóricos a atribuir um papel importante ao desenvolvimento da criança. Freud acreditava que o padrão de personalidade do adulto era estabelecido no começo da vida, estando quase completamente formado por volta dos cinco anos. Na teoria psicanalítica do desenvolvimento, a criança passa por uma série de estágios psicossexuais. No decorrer desses estágios, as crianças são consideradas auto-eróticas, isto é, elas obtêm prazer erótico ou sensual ao estimular as zonas erógenas do corpo ou ao ser estimuladas pelos pais ou por outras pessoas que costumam cuidar delas normalmente. Cada estágio de desenvolvimento tende a estar localizado numa zona erógena específica. O estágio oral vai do nascimento ao segundo ano de vida. Durante essa fase, a estimulação da boca, como sugar, morder e engolir, é a fonte primária de satisfação erótica. A satisfação inadequada nesse estágio — demasiada’ ou muito pouca — pode produzir um tipo oral de personalidade, uma pessoa excessivamente preocupada com hábitos bucais como fumar, beijar e comer. Freud acreditava que uma ampla gama de comportamentos adultos, do otimismo exagerado ao sarcasmo e ao cinismo, era atribuível a incidentes ocorridos no curso do estágio oral de desenvolvimento. No estágio anal, a gratificação vai da boca para o ânus, e as crianças derivam prazer da zona anal. Durante esse estágio, que coincide com o período de treinamento da higiene pessoal, as crianças podem expelir ou reter fezes, em ambos os casos desafiando os pais. Conflitos durante esse período podem resultar num adulto anal expulsivo, que é sujo, perdulário e extravagante, ou num adulto anal retentivo, demasiado asseado, parcimonioso e compulsivo. Durante o estágio fálico, que ocorre por volta do quarto ano de idade, a satisfação erótica se transfere para a região genital. Há muita manipulação e exibição dos órgãos genitais, bem como fantasias sexuais. Freud situou nesse estágio o desenvolvimento do complexo de Êdipo, a partir da lenda grega em que Édipo mata inadvertidamente o pai e desposa a mãe. Freud sugeriu que as crianças sentem atração sexual pelo genitor do sexo oposto e temor pelo genitor do mesmo sexo, agora percebido como rival. Freud derivou essa noção de suas próprias experiências infantis. “Também no meu caso, encontrei amor na mãe e ciúme do pai”, escreveu ele (Freud, 1954, p. 223). De modo geral, as crianças superam o complexo de Édipo identificando-se com o genitor do mesmo sexo e substituindo o anseio sexual com relação ao genitor do sexo oposto pela afeição. Contudo, as atitudes com relação ao sexo oposto no decorrer desse período persistem e influenciam as relações adultas com membros do sexo oposto. Um dos resultados da identificação com o genitor do mesmo sexo é o desenvolvimento do superego. Ao assumirem os modos e atitudes desse genitor, as crianças também adotam os seus padrões do superego. As crianças que sobreviverem às muitas lutas desses primeiros estágios entram num período de latência, que dura mais ou menos do quinto ao décimo segundo ano de vida. Então, ao ver de Freud, o início da adolescência e a proximidade da puberdade assinalam o começo do estágio genital.O comportamento heterossexual se torna evidente, e a pessoa começa a se preparar para o casamento e para fomar uma família. O material a seguir trata do desenvolvimento da vida sexual em bebês e crianças. Ele foi escrito cerca de trinta anos depois de Freud ter proposto pela primeira vez os estágios psicossexuais da personalidade, e representa seu pensamento ulterior sobre questões do desen volvimento sexual. Nesta passagem, Freud discute: (1) o surgimento da pulsão sexual no início da vida, (2) seu ressurgimento na época da puberdade, (3) os estágios oral, anal e fálico do desenvolvimento psicossexual, e (4) a homossexualidade, que Freud considerava uma inibição do desenvolvimento. Segundo a opinião predominante, a vida sexual humana consiste essencialmente num esforço para colocar o próprio órgão genital em contato com o de alguém do sexo oposto. A isso acham- se associados, como fenómenos acessórios e atos introdutórios, beijar esse corpo alheio, olhá-lo e tocá-lo. Imagina-se que esse esforço faça seu aparecimento na puberdade — isto é, na idade da maturidade sexual — e esteja a serviço da reprodução. Não obstante, sempre foram conhecidos certos fatos que não se enquadram na estreita moldura dessa visão. (1) Constitui um fato notável existirem pessoas que só são atraidas por indivíduos do seu próprio sexo e pelo órgão genital deles. (2) Ë igualmente notável existirem pessoas cujos desejos se comportam exatamente como os sexuais, mas que, ao mesmo tempo, desprezam inteiramente o órgão sexual ou seu uso normal pessoas desse tipo são conhecidas como ‘pervertídas”. (3) E, por fim, é uma coisa marcante que algumas crianças (que são, por causa disso, consideradas degeneradas) tenham um interesse muito precoce pelo seu órgão genital e apresentem nele sinais de excitação. Pode-se bem acreditar que a psicanálise tenha provocado espanto e oposição quando, em parte com base nesses três fatos negligenciados, contradisse todas as opiniões populares acerca da sexualidade. As suas principais descobertas são as seguintes: (a) A vida sexual não começa apenas na puberdade, mas se inicia, com manifestações claras, logo depois do nascimento. (b) É necessário distinguir nitidamente entre os conceitos de “sexual” e “genital”. O primeiro é o conceito mais amplo e inclui muitas atividades que não têm nenhuma relação com os órgâos genitais. (c) A vida sexual inclui a função de obter prazer das zonas do corpo — função mais tarde posta a serviço da reprodução. As duas funções muitas vezes deixam de coincidir completamente. O principal interesse se concentra, naturalmente, na primeira dessas asserções, a mais inesperada. Descobriu-se que, na tenra infância, há indícios de atividade corporal a que somente um antigo preconceito poderia negar o nome de sexual, atividade que se acha ligada a fenômenos físicos com que deparamos mais tarde na vida erótica adulta — tais como a fixação em objetos particulares, o ciúme e assim por diante. Descobriu-se ainda, contudo, que esses fenômenos que surgem na tenra infância fazem parte de um curso ordenado de desenvolvimento, que eles atravessam um processo regular de aumento, chegando a um climax perto do fmal do quinto ano de vida, seguindo-se então uma calmaria. Durante essa calmaria, o progresso se interrompe e muita coisa é desaprendida, além de haver muito retrocesso. Terminado esse perfodo de latência, como ele é chamado, a vida sexual volta a avançar com a puberdade; poderíamos dizer que ela tem uma segunda florescência. E aqui damos com o fato de o início da vida sexual ser difásico, de ele ocorrer em duas ondas — algo que é desconhecido a não ser no homem e que, evidentemente, tem uma importante relação com a hominização. Não é sem importância o fato de os eventos desse período primitivo, exceção feita a uns poucos resíduos, serem vitimados pela amnésia infantil. As nossas concepções sobre a etiologia das neuroses e a nossa técnica de terapia analítica derivam desses conceitos; e o nosso rastreio dos processos desenvolvimentais desse período primitivo também forneceu provas para outras conclusões. O primeiro órgão a emergir como zona erógena e a fazer exigências libidinais à mente é, a partir da época do nascimento, a boca. De início, toda atividade física se concentra em fornecer satisfação às necessidades dessa zona. Primariamente, é claro, essa satisfação serve ao propósito da autopreservação por meio da alimentação; mas não se deve confundir fisiologia com psicologia. A obstinada persistência do bebê em sugar é uma prova, num estágio precoce, de uma necessidade de satisfação que, embora originada na ingestão da nutrição e por ela instigada, se esforça por obter prazer independentemente da nutrição, podendo e devendo, por essa razão, ser considerada sexual. Durante essa fase oral, impulsos sádicos já ocorrem esporadicamente ao lado do aparecimento dos dentes. Sua amplitude é bem maior na segunda fase, que descrevemos como anal- sádica, visto que a satisfação é então procurada na agressão e na função excretória. A nossa justificativa para incluir na libido os impulsos agressivos tem como base a concepção de que o sadismo constitui uma fusão instintual de impulsos puramente libídinais e impulsos puramente destrutivos, fusão que, a partir de então, persiste ininterruptamente. A terceira fase é a conhecida como fálica, que é, por assim dizer, uma precursora da forma final assumida pela vida sexual e já se assemelha muito a ela. Deve-se observar que não são os órgãos genitais de ambos os sexos que desempenham um papel nessa fase, mas apenas o masculino (o falo). Os órgãos genitais femininos permanecem por muito tempo desconhecidos: nas tentativas. Surge a questão de saber se a satisfação de impulsos instintuais puramente destrutivos pode ser sentida com prazer, se ocorre a destrutividade pura sem nenhuma mistura libidinal. A satisfação do instinto de morte que permanece no ego parece não produzir sentimentos de prazer, embora o masoquismo represente uma fusão inteiramente análoga ao sadismo das crianças de compreender os processos sexuais, elas se rendem à venerável teoria da cloaca — teoria que tem justificação genética. Com a fase fálica, e no curso dela, a sexualidade da tenra infância alcança seu apogeu e se aproxima da dissolução. Doravante, meninos e meninas têm histórias diferentes. Ambos começaram a pôr sua actividade intelectual a serviço de pesquisas sexuais; ambos partem da premissa da presença universal do pênis. Mas agora os caminhos dos sexos divergem. O menino entra na fase edipiana; começa a manipular o pênis e, simultaneamente, tem fantasias de praticar algum tipo de actividade com ele em relação à sua mãe, até que, devido ao efeito combinado de uma ameaça de castração e da visão da ausência de pênis nas pessoas do sexo feminino, passa pelo maior trauma de sua vida, que dá início ao período de latência, com todas as suas consequências. A menina, depois de tentar em vão fazer o mesmo que o menino, vem a reconhecer sua falta de pênis, ou melhor, a inferioridade do seu clitóris, o que tem efeitos permanentes sobre o desenvolvimento do seu carácter; como resultado desse primeiro desapontamento em rivalidade, ela com frequência começa a dar as costas inteiramente à vida sexual. Seria um erro supor que essas três fases se sucedem de forma clara. Uma pode aparecer em adição a outra; elas podem sobrepor-se e podem estar presentes lado a lado. Nas primeiras fases, os diferentes instintos componentes empenham-se em sua busca do prazer independentemente uns dos outros; na fase fálica, há os primórdios de uma organização que subordina os outros impulsos à primazia do genitais e determina o começo de uma coordenação do impulso geral na direção do prazer na função sexual. A organização completa só é alcançada na puberdade, numa quarta fase, a genital. Estabelece-se então um estado de coisas em que: (1) algumas catexias (investimentos) libidinais primitivas são retidas, (2) outras são incorporadas à função sexual como actos preparató rios, auxiliares, cuja satisfação produz o que é conhecido como pré-prazer, e (3) outros impulsos são excluidos da organização, sendo quer inteiramente suprimidos (reprimidos) ou empregados no ego de outra maneira, formando traços de carácter ou passando pela sublimação, com um deslocamento dos seus objetivos. Esse processo nem sempre é realizado de modo perfeito. As inibições do seu desenvolvimento manifestam-se como os muitos tipos de distúrbios da vida sexual. Quando isso acontece, deparamos com fixações da libido em condições de fases anteriores, cujo impulso, que independe do objectivo sexual normal, é descrito como perversão. Uma dessas inibições do desenvolvimento é, por exemplo, a homossexualidade, quando manifesta. A análise revela que, em todos os casos, um vínculo objetal de carácter homossexual esteve presente e, na maioria das vezes, persistiu em condição latente. A situação é complicada pelo facto de que, como regra geral, os processos necessários à obtenção de um desfecho normal não se acham completamente presentes nem ausentes, mas parciainiente presentes, de modo que o resultado final fica dependente dessas relações quantitativas. Nessas circunstâncias, a organização genital é, na verdade, obtida, mas faltam-lhe as parcelas da libido que não avançaram com o resto e permaneceram fixadas em objectos e objectivos prégenitais. Esse enfraquecimento revela-se numa tendência, quando há ausência de satisfação genital ou existem dificuldades no mundo exterior real, de libido retomar às suas catexias pré-genitais anteriores (regressão). Durante o estudo das funções sexuais, alcançamos uma convicção inicial, preliminar, ou melhor, uma suspeita, sobre duas descobertas que adiante se verá serem importantes para todo o nosso campo. Primeiramente, as manifestações normais e anormais que observamos (isto é, a fenomenologia do assunto) necessitam ser descritas do ponto de vista de sua dinâmica e de sua economia (no nosso caso, do ponto de vista da distribuição quantitativa da libido). E, em segundo lugar, a etiologia dos distúrbios que estudamos deve ser procurada na história do desenvolvimento do indivíduo — quer dizer, no começo de sua vida. Afirma-se com frequência a ocorrência de excitações vaginais precoces. É, porém, mais provável que se trate de excitações do citóris — isto é, de um órgão análogo ao pénis. Isso não invalide nosso direito de descrever a fase como fálica. O Mecanicismo e o Determinismo no Sistema de Freud Durante sua formação universitária, Freud sofreu a influência da escola de pensamento mecanicista da fisiologia alemã. Pode parecer que a noção de mecanicismo, que permeia tanto a psicologia experimental, fosse irrelevante para a obra de Freud sobre as motivações ocultas do comportamento. Os estruturalistas e mais tarde os comportamentalistas consideravam os seres humanos, em seus processos e funções, semelhantes a máquinas. Em primeiro lugar a mente, e depois o comportamento do homem, foram reduzidos aos seus componentes mais elementares, analisados e estudados em termos positivistas e materialistas. Pode afigurar-se surpreendente, portanto, saber que também Freud foi afetado pela mesma tradição mecanicista. Freud, não menos que os psicólogos experimentais, acreditava que todos os eventos mentais — incluindo os actos falhos e os sonhos — eram determinados. Nenhum fragmento de comportamento ou pensamento podia acontecer por acaso ou por livre-arbítrio. Para Freud, a cada acção correspondia sempre uma causa, sempre havia um motivo consciente ou inconsciente. Mas o determinismo não esgota o espírito mecanicista. Observamos o solene compromisso assumido por quatro jovens cientistas, incluindo Brücke (professor de Freud na escola de medicina): somente as forças físico-químicas comuns agem no interior do organismo. E, desde o início de sua carreira, Freud aceitou esse fisicalismo, a noção de que todos os fenómenos podem ser reduzidos aos princípios da física. Em 1895, Freud estava trabalhando num projeto de uma psicologia científica, no qual ele tentava mostrar que a psicologia tem de ter uma base física e que fenômenos puramente mentais exibem muitas das características e inúmeros padrões dos processos neurofisiológicos que lhes servem de base. Para Freud, a psicologia deve ser uma ciência natural cuja meta é “representar processos psíquicos como estados quantitativamente determinados de partículas materiais especificáveis” (Freud, 1895, p. 359). Esse projeto nunca se completou, mas é possível discernir, em escritos posteriores de Freud, os princípios com que ele trabalhou e a terminologia que adotou da física, particularmente da mecânica, da eletricidade e da hidráulica. Seu trabalho ao longo dessas linhas dá outro exemplo de dados perdidos para a história durante um período de tempo. O trabalho só foi encontrado mais de cinquenta anos depois de ele tê­ lo escrito, e onze anos depois de sua morte. Até então, ninguém sabia sequer que Freud considerara semelhante ideia, e muito menos que trabalhara tão extensamente com ela. Freud modificou sua intenção original de modelar sua psicologia de acordo com a física (quando descobriu que seu objeto de estudo não podia ser tratado por técnicas físicas e químicas), mas permaneceu fiel à filosofia positivista, ao determinismo em especial, que alimentava a psicologia experimental. E, embora evidentemente influenciado por essa concepção, ele não se deixou restringir por ela. Quando via que ela não se enquadrava, ele a alterava ou descartava. No final, demonstrou quão restritiva era a concepção mecanicista dos seres humanos. As Relações entre a Psicanálise e a Psicologia A psicanálise desenvolveu-se fora da corrente principal da psicologia académica, onde permaneceu por muitos anos. “A psicologia académica fechou em larga medida suas portas à doutrina psicanalítica. Um editorial não assinado de um número de 1924 do Joumal of Abnorinal Psychology lamentou a interminável corrente de escritos sobre o inconsciente de autoria de psicólogos europeus” (FulIer, 1986, p. 123). O editorial afirmava que esses escritos eram essencialmente desprovidos de valor. A partir dessa declaração, aceitaram-se poucos artigos sobre psicanálise para publicação, uma proibição que durou ao menos duas décadas. O fato de tanto o sistema como o seu originador não serem do meio também complicou e retardou sua aceitação. Na realidade, isso foi até uma barreira, por algum tempo, a uma séria consideração da psicanálise. Eventualmente, contudo, as barreiras entre as duas disciplinas, a princípio rígidas e absolutas, foram rompidas. Vários factores contribuiram para manter a psicanálise e a psicologia académica distanciadas. O primeiro envolve a ausência de um sentido de continuidade na obra de Freud com relação aos progressos da psicologia. Não havia paralelos nem esforços coincidentes, porque o trabalho de Freud não tinha precedentes no desenvolvimento da psicologia. Os psicólogos não podiam encontrar uma maneira significativa de vincular seus esforços com seu próprio trabalho nem com o de seus predecessores. Wilhelm Wundt, por exemplo, nunca foi levado a admitir o inconsciente em sua psicologia como resultado do conhecimento sobre o trabalho de Freud, já que ele não tinha relação com sua própria investigação sobre a natureza da consciência. Comentando a posição de Wundt, Freud disse: “Não podemos deixar de pensar que a velha psicologia foi morta pela minha.., doutrina, mas a velha psicologia não se deu conta do facto e continua a ensinar como sempre” (Wittels, 1924, p. 130). Uma segunda razão para os conflitos entre psicólogos e psicanalistas foi o facto de a psicologia, em suas primeiras tentativas de ser uma ciência pura, estar centrada no método. A psicanálise, em contraste, estava centrada no problema. A aplicação da psicanálise ao tratamento das neuroses divergia do objectivo da psicologia de descobrir leis do comportamento humano por meio dos métodos das ciências naturais. Esses diferentes objectivos e objectos de estudo requeriam métodos distintos. A preocupação de Freud era mais global — a personalidade humana total, em vez de funções especificas como a percepção e a aprendizagem. A psicologia tinha adotado o método experimental, em que cada variável, cada pequeno aspecto do comportamento era isolado para estudo por um breve tempo no laboratório. A psicanálise se ocupava do ser humano inteiro durante um longo período de tempo, colhendo dados sobre todos os aspectos de experiências passadas e presentes. Os psicólogos académicos — mergulhados no rigor da ciência, buscando definições precisas e operacionais para os seus conceitos — não gostavam e desconfiavam das ideias freudianas, que não podiam ser quantificadas nem vinculadas com variáveis empíricas concretas. Termos como ego, id e repressão eram anátema para psicólogos que só queriam trabalhar em termos específicos de estímulo-resposta. Que Críticas à Psicanálise caros estudantes de HSP? O volume de críticas dirigidas a Freud e suas teorias, muitas delas vindas de fora da psicologia, é enorme, mas restringiremos a nossa discussão às críticas de psicólogos, algumas delas já mencionadas. Particularmente vulneráveis ao ataque dos psicólogos experimentais são os métodos freudianos de coleta de dados. Ele apoiava suas descobertas e conclusões nas respostas que os pacientes davam enquanto eram submetidos à análise. Consideremos algumas das deficiências dessa abordagem em comparação com o método experimental de colectar sistematicarnente dados objectivos em condições controladas de observação. Em primeiro lugar, as condições em que Freud colectou seus dados são assistemáticas e não controladas. Ele não fazia uma transcrição textual das palavras de cada paciente, trabalhando a partir de anotações que fazia várias horas depois de ver o paciente. Alguns dos dados originais (as palavras do paciente) certamente se perdiam nesse ínterim devido aos caprichos da memória e à bem documentada possibilidade de distorção e omissão. Assim, os dados consistiam somente no que Freud se lembrava. Também é possível que, ao se recordar das palavras do paciente, Freud as reinterpretasse. Sua reconstrução dos dados poderia não reflecti-los de maneira precisa. Ao extrair suas inferências, Freud pode ter sido movido pelo desejo de encontrar materiais que sustentassem suas hipóteses. Em outras palavras, ele pode só ter se recordado e registrado aquilo que queria ouvir. Devemos ainda considerar a possibilidade de que as anotações de Freud fossem altamente precisas, mas não há como estar certo sobre isso porque os dados originais não sobreviveram. Outra critica refere-se a discrepâncias descobertas entre as anotações de Freud em suas sessões terapêuticas e as histórias de caso que ele terminava por publicar, supostamente com base nessas notas. Um estudo fez uma comparação e descobriu várias diferenças entre suas anotações e a história publicada. Entre as diferenças estavam um alongamento do período de análise, uma versão incorrecta da sequência de eventos revelada pelo paciente durante a análise e a afirmação não fundamentada de que o paciente estava curado (Eagle, 1988; Mahoney, 1986). Não há como determinar se Freud fez essas distorções deliberadamente, para reforçar sua posição, ou se elas foram produto do seu inconsciente. Também não podemos determinar se erros semelhantes caracterizam seus outros estudos de caso, pois ele destruiu a maioria dos arquivos dos pacientes. Há uma outra crítica aos dados brutos de Freud. Mesmo que um registro completo e literal tivesse sido mantido, nem sempre teria sido possível determinar a validade do que os pacientes relatavam. Freud fez poucas tentativas de verificar os relatos das experiências infantis dos seus pacientes. Alegam críticos que ele deveria ter tentado fazê-lo perguntando a parentes e amigos, por exemplo, sobre os eventos descritos. Assim, o primeiro passo da construção teórica de Freud — a coleta de dados — pode ser caracterizado como incompleto, imperfeito e impreciso. Quanto ao segundo — fazer inferências e generalizações a partir dos dados —, não sabemos o que aconteceu, porque Freud nunca explicou o processo. E, como os seus dados não eram suscetíveis de quantificação, não há como determinar sua confiabilidade ou significação estatística. Há sérias acusações da perspectiva da metodologia científica e da construção teórica. Num certo sentido, pedem-nos que aceitemos de boa fé a validade das operações e conclusões de Freud. Suas observações não podem ser repetidas, pois não se sabe precisamente o que ele fez em termos da reunião de dados e das generalizações. A linguagem da ciência é precisa, não deixando espaço para ambigüidade ou distorção. Parece que Freud não falava essa língua, e é difícil traduzir de uma para a outra. Outro ponto de crítica refere-se à dificuldade de derivar proposições empiricamente das suas muitas hipóteses. Como, por exemplo, verificaríamos a noção de desejo de morte? Os psicanalistas podem usar a ideia para explicar comportamentos como o suicídio, depois do facto, mas como estuda-la no laboratório? Também as teorias e pressupostos freudianos sobre o comportamento humano têm sido atacados. Mesmo freudianos concordam que ele muitas vezes se contradisse e que suas definições de alguns conceitos-chave — como id, ego e superego — são obscuras. Freud o reconheceu e fez em seus últimos escritos observações sobre as dificuldades de definição de algumas de suas ideias. Muitos psicólogos contestaram as concepções de Freud sobre as mulheres. Ele sugeriu que as mulheres tinham superegos sofrivelmente desenvolvidos e se sentiam inferiores quanto a seus corpos por não terem pênis. A analista Karen Horney deixou o círculo psicanalítico de Freud por causa disso, tendo desenvolvido mais tarde seu próprio sistema. Hoje, contudo, a crença disseminada entre os psicólogos é que as “falácias da teoria freudiana sobre o desenvolvimento psicossexual feminino [ quase totalmente refutadas e reconhecidamente incorrectas” (Schwartz, 1988, p. 502). Examinamos a obra de outros teóricos que romperam com Freud e tentaram modificar sua posição. Eles alegaram que Freud acentuava em demasia as forças biológicas, o sexo em especial, como forças plasmadoras primárias da personalidade. Eles acreditavam que a personalidade era mais influenciada por forças sociais. Outros se opuseram ao determinismo e à negação do livre-arbítrio por Freud, bem como à sua concentração no comportamento passado, excluindo as esperanças e alvos do futuro. Alguns criticaram Freud por desenvolver uma teoria da personalidade baseada apenas em observações de neuróticos, ignorando as características de pessoas emocionalmente saudáveis. Todos esses pontos foram usados para construir concepções distintas da personalidade humana e logo levaram à divisão do campo psicanalítico e à formalização de várias escolas derivativas de análise freudiana. A Validação Científica de Conceitos Psicanalíticos Observamos que Freud não confiava muito em avaliações experimentais de sua teoria. Contudo, a partir de sua morte, em 1939, muitos dos seus conceitos foram submetidos a testes experimentais. Uma análise de uns dois mil estudos retirados da psiquiatria, da psicologia, da antropologia e de outras disciplinas examinou a credibilidade científica de algumas formulações de Freud (Fisher e Greenberg, 1977). As histórias de caso, o principal método de pesquisa da literatura psicanalítica, não foram incluídas, por algumas das razões acima citadas. Os pesquisadores só aceitaram os dados que tinham sido “obtidos por meio de procedimentos repetiveis e que envolvessem técnicas que permitissem verificar a objetividade do observador responsável pelo relato” (Fisher e Greenberg, 1977, p. 15). Embora alguns conceitos freudianos mais amplos (como id, ego, superego, desejo de morte, libido e ansiedade) resistissem a tentativas de validação científica, outros se mostraram suscetíveis de testes. Estudos publicados dão apoio a algumas das características dos tipos de personalidade oral e anal, a alguns factores causativos da homossexualidade, à noção de que os sonhos servem como um liberador da tensão e a aspectos do complexo de Édipo em meninos (rivalidade com o pai, fantasias sexuais acerca da mãe e ansiedade da castração). Entre os conceitos freudianos testados e não corroborados pelos resultados experimentais estão a noção de que os sonhos satisfazem simbolicamente desejos e anseios reprimidos; a afirmação de que os meninos, ao resolverem o complexo de Édipo, se identificam com o pai e aceitam seus padrões de superego por medo; e a ideia de que as mulheres têm uma concepção inferior do seu corpo, padrões de superego menos severos do que os homens e mais dificuldade em alcançar uma identidade. Outras pesquisas comprovaram os processos inconscientes e sua influência sobre os pensamentos e o comportamento, sugerindo que as influências podem até ser mais profundas do que Freud afirmava (Brody, 1987; Jacoby e Kelley, 1987; Silverrnan, 1976). Além disso, experimentos do chamado lapso freudiano demonstraram que ao menos algumas de suas manifestações parecem ser justamente o que Freud dissera que eram — conflitos e ansiedades inconscientes que se revelam de modo embaraçoso (Motley, 1985). Como observamos, nem todas as pesquisas feitas sobre esses conceitos corroboram a psicanálise. Por exemplo, a pesquisa sobre o desenvolvimento da personalidade não confirma a proposta de Freud de que a personalidade é formada principalmente aos cinco anos e pouco muda depois disso. Estudos mostram que a personalidade continua a se desenvolver ao longo do tempo e pode passar por dramáticas mudanças depois dos cinco anos (Kagan, Kearsley e Zelazo, 1978; Olweus, 1979). O mais importante a respeito dessas tentativas científicas de validar ideias freudianas é que elas mostram que ao menos alguns conceitos psicanalíticos podem ser reduzidos a proposição testáveis pelo método experimental. Quais são as Contribuições da Psicanálise Por que terá a psicanálise não apenas sobrevivido como também prosperado apesar das críticas que lhe foram feitas? Todas as teorias do comportamento podem ser criticadas por exibir algum grau de ausência de validade científica. Os psicólogos em busca de uma teoria têm às vezes de escolhê-la com base em outros critérios além da rigidez e da precisão formal. Quem escolhe a psicanálise, contudo, não o faz na ausência de provas. A psicanálise de facto oferece evidências, embora não do tipo que costuma ser aceito pela ciência. Mas, embora a evidência psicanalítica não seja científica no sentido tradicional, isso não significa que a teoria seja incorreta ou falaciosa. A crença na psicanálise deve ter como base o terreno intuitivo da aparência de plausibilidade: Quem quer que aceite ou rejeite as teorias psicanalíticas o faz mediante a mesma espécie de raciocínio que lhe proporciona os mil e um julgamentos que ele é forçado a fazer na vida cotidiana com base em provas insuficientes ou inadequadas — na verdade, o tipo de julgamentos que ele é forçado a fazer para viver, mas que não tem nenhum prestígio na ciência. Essas estimativas, advindas de uma multiplicidade de impressões e interpretações, conjecturas e introvisões, resultam com frequência em convicções inabaláveis, convicções que podem estar certas ou erradas mas que, da perspectiva da ciência, não podem ser reconhecidas quer como provadas ou como refutadas (Heidbreder, 1933, pp. 403-404). De modo geral, a teoria freudiana tem tido um forte impacto sobre a psicologia académica americana. Quase cinquenta anos depois da morte de Freud, foi publicado o primeiro de uma série de volumes anuais dedicados ao estudo da psicanálise. O editor desse número inicial falou de uma “verdadeira renascença dos estudos freudianos” (Stepansky, 1986, p. 15). Embora o interesse pela teoria permaneça elevado, o interesse pela psicanálise como técnica terapêutica declinou, se considerannos o número de pacientes que preferem a psicanálise e o número de candidatos ao treinamento analítico ( Gelman, 1988; Smith, 1986). Cara e demorada, a terapia freudiana está sendo superada por formas mais breves e baratas de psicoterapia (algumas delas derivadas da psicanálise freudiana) e pelas várias terapias comportamentalistas e cognitivas. Alguns conceitos de Freud obtiveram ampla aceitação e foram assimilados à corrente principal da psicologia contemporânea. Incluem-se entre eles o papel da motivação inconsciente, a importância das experiências infantis na plasmação do comportamento adulto e a operação dos mecanismos de defesa. O interesse por essas áreas deu origem a muitas pesquisas que têm sustentado a existência de influências inconscieintes sobre o comportamento. Embora essas investigações do inconsciente não sejam do tipo freudiano, a admissão do inconsciente na psicologia é um legado da obra de Freud. O impacto de Freud sobre a cultura popular tem sido de facto enorme. Isso se fez sentir imediatamente depois de sua visita à Universidade Clark em 1909. Jornais apresentaram muitas histórias sobre Freud e, por volta de 1920, mais de duzentos livros sobre a psicanálise freudiana tinham sido publicados nos Estados Unidos. A imprensa britânica considerou a psicanálise uma “mania” (Rapp, 1988, p. 191). Revistas como Ladies Hoine Joamal, Nation e The New Republic publicaram artigos sobre a psicanálise. Em 1935, um grande estúdio cinematográfico, a MGM, ofereceu a Freud cem mil dólares para ele colaborar num filme sobre o amor. Ele recusou. Esse entusiasmo público pelas ideias freudianas ocorreu bem antes de sua aceitação pela psicologia académica. O século XX tem testemunhado um gradual afrouxamento das restrições sexuais no comportamento, nas artes, na literatura e no entretenimento. Acredita-se amplamente que a inibição ou repressão da satisfação sexual podem ser danosas. É irônico, no entanto, que a mensagem de Freud sobre o sexo tenha sido submetida a semelhante interpretação errônea. Ele não estava pedindo um enfraquecimento dos códigos sexuais de conduta nem o aumento da liberdade sexual. Sua posição consistente era de que a inibição do impulso sexual era necessária à sobrevivência da civilização. Apesar de sua intenção, a maior liberdade sexual da nossa época resulta em parte do seu trabalho. Sua ênfase no sexo ajudou a popularizar suas concepções. Mesmo em revistas científicas, artigos sobre sexo têm um atrativo sensacionalista. Apesar das críticas de falta de rigor científico e de fraqueza metodológica, a psicanálise freudiana continua sendo uma importante força na psicologia moderna- O historiador E. G. Boring lamentou, na edição de 1929 de sua História da Psicologia Experimental, que a psicologia não tivesse um expoente verdadeiramente grande da estatura de um Darwin ou de um Helniholtz. Somente vinte e um anos mais tarde, na segunda edição, ele falou de Freud com admiração: Hoje, ele é visto como o maior originador de todos, o agente do Zeitgeist(ideal) que consumou a invasão da psicologia pelo princípio do processo inconsciente... Não é provável que a história da psicologia possa ser escrita nos próximos três séculos sem mencionar o nome de Freud e ainda se considerar uma história geral da psicologia. E aqui temos o melhor critério da grandeza: a fama póstuma (Boring, 1950, pp. 743, 707). Tal como ocorreu com Wundt e sua psicologia experimental, durou pouco o monopólio de Freud sobre o seu novo sistema da psicanálise. Mas se passaram vinte anos da fundação do movimento e este se dividiu em facções concorrentes lideradas por analistas que discordavam de Freud em pontos básicos. Durante a vida de Freud, esses homens e mulheres desenvolveram suas próprias abordagens. Embora não contestassem por inteiro sua orientação psicanalítica, eles tentaram corrigir o que consideravam deficiências e inadequações sérias nas formulações freudianas. Freud não reagiu bem aos dissidentes. Os analistas que esposavam as novas posições foram recebidos com desaprovação e até com hostilidade. Pouco importava o quanto estavam próximos, pessoal e profissionalmente, de Freud: uma vez que eles abandonavam seus ensinamentos, ele os considerava proscritos e não voltava a lhes dirigir a palavra. Discutiremos três dos dissidentes mais proeminentes: Carl Jung, Alfred Adier e Karen Horney. Todos foram freudianos ortodoxos antes de deixarem o círculo do mestre para promover suas próprias concepções. Também trataremos de três descendentes da posição freudiana — Gordon Allport, Henry Murray e Erik Erikson — que desenvolveram suas abordagens depois da morte de Freud. Nunca tendo sido freudianos ortodoxos, eles não foram dissidentes; em vez disso, derivaram suas ideias das de Freud, quer apoiando-se no seu trabalho ou se opondo a ele. Os Neofreudianos e a Psicologia do Ego Antes de passar aos dissidentes e descendentes, observamos que nem todos os que vieram depois de Freud na tradição psicanalítica sentiram a necessidade de modificar radicalmente, abandonar ou derrubar seu sistema. Permaneceu um grande grupo de analistas neofreudianos que aceitam os fundamentos e premissas centrais da psicanálise, mas que, ao longo dos anos, modificaram e ampliaram certos aspectos do sistema de Freud. A principal modificação que esses freudianos leais introduziram na psicanálise é uma ênfase ampliada no ego ( Hartmann, 1964). Em vez de ser o escravo do id, o ego tem um papel mais amplo. Acredita-se que ele seja mais independente do id, possua sua própria energia não derivada do id e tenha suas próprias funções distintas das do id. Esses psicanalistas consideram o ego capaz de realizar as funções normais da consciência, como a percepção, a aprendizagem e a memória, livre do conflito que Freud disse ser produzido quando os impulsos do id pressionavam em busca de satisfação. Ao ver de Freud, o ego era eternamente responsável diante do id, nunca estava livre de suas exigências. Na concepção revista, o ego pode levar suas funções a efeito independentemente do id, o que constitui um significativo afastamento do pensamento freudiano ortodoxo. Outra mudança introduzida pelos neofreudianos é uma diminuição na ênfase sobre as forças biológicas como influências sobre a personalidade, e o favorecimento de forças sociais e psicológicas. Os neofreudianos também minimizam a importância da sexualidade infantil e do complexo de Édipo. Eles sugerem que o desenvolvimento da personalidade é determinado primordialmente por forças psicossociais, e não psicossexuais. As interacções sociais na infancia assumem maior importância do que as interacções sexuais, reais ou imaginadas. Um dos líderes do movimento neofreudiano da psicologia do ego foi a filha de Freud, Anua. Anna Freud (1895-1982). A mais nova dos seis filhos de Freud, Anua Freud, escreveu que não teria nascido se alguma forma segura de contracepção tivesse estado disponível aos seus pais. Freud anunciou o seu nascimento, recebido mais com resignação do que com alegria, numa carta a um amigo, comentando que teria dado a notícia por telegrama se o bebê fosse menino (Young-Bruehl, 1988). Mas o ano de nascimento de Anna, 1895, foi talvez simbólico — ou profético — porque coincidiu com o nascimento da psicanálise e porque Anna seria a única filha a seguir os passos do pai e tornar-se analista. Esse desfecho não correspondia aos desejos de Freud. Ele esperava que Anna se casasse e tivesse filhos, tendo resistido à ideia de que seguisse a carreira psicanalítica. No fmal, contudo, ele cedeu. “O que eu podia fazer?”, disse ele. “Ela era minha filha” (New York Times, 12 de novembro de 1985). Assim, aos catorze anos, Anna Freud se sentava discretamente num canto nas reuniões da Sociedade Psicanalítica de Viena, absorvendo tudo o que era dito. Aos vinte e dois, movida pelo seu forte apego emocional ao pai e por suas preocupações com o que Freud denominou “sua sexualidade”, Anna foi fazer análise com ele. Cinco anos depois, ela leu seu primeiro artigo académico perante a Sociedade Psicanalítica de Viena. Intitulado “Fantasias e Devaneios de Espancamento”, ele supostamente se baseava numa história de caso de um paciente anónimo. Na verdade, tratava-se de suas próprias fantasias; ela ainda não começara a tratar pacientes. O artigo descrevia sonhos de um relacionamento amoroso e incestuoso entre pai e filha, uma surra e a gratificação através da masturbação. O artigo foi bem recebido por Freud e seus colegas e valeu a Anna sua admissão na Sociedade. Três anos depois, ela publicou seu primeiro livro, Introdução à Técnica da Análise Infantil (1927), que indicou a direção dos seus interesses. Ali apresentava uma abordagem de terapia psicanalítica com crianças que considerava sua relativa imaturidade e seu baixo nível de habilidade verbal. Suas inovações incluem o uso de materiais para brincar e a observação da criança em casa. A maior parte do seu trabalho foi feita em Londres, onde a família Freud se instalou depois de fugir dos nazistas em 1938. Ela abriu uma clínica na casa vizinha àquela onde Freud morreu, tratando de pacientes e,instalando ali um centro de treinamento psicanalítico onde muitos psicólogos clínicos americanos estudaram. Sua obra foi registrada em volumes anuais de The Psychoanalytic Study of the Child (O Estudo Psicanalítico da Criança), que começou a ser publicado em 1945. Anua Freud também deu substancial contribuição à revisão da posição teórica ortodoxa do pai, ampliando o papel do ego em seu funcionamento independente do id. Em O Ego e os Mecanismos de Defesa (1936), ela desenvolveu e esclareceu as concepções freudianas, reviu a posição teórica ortodoxa do pai e aplicou a terapia psicanalftica a crianças. uso dos mecanismos de defesa para proteger o ego da ansiedade, o que veio a ser a relação padrão de mecanismos de defesa freudianos, como os mecionados foi na realidade trabalho de Anna Freud. Ela os definiu mais claramente e forneceu exemplos com base em sua análise de crianças. A psicologia do ego, tal como desenvolvida por Anna Freud e outros, tornou-se a forma americana primordial de psicanálise entre a década de 40 e o começo da de 70. Esses neofreudianos se empenharam em tornar a psicanálise “parte da psicologia científica. Eles o fizeram traduzindo, simplificando e definindo em termos operacionais noções freudianas, estimulando a investigação experimental de hipóteses psicanalíticas e alterando a psicoterapia psicanalítica” (Steele, 1985b, p. 222). Com isso, promoveram uma aproximação entre a psicanálise e a psicologia experimental académica. Outra tentativa de modificar a psicanálise freudiana é a teoria das relações objectais, que também se desenvolveu na Inglaterra. Essa abordagem tem como foco a intensa relação emocional que se desenvolve entre o bebê e a mãe. Ela descreve esse vínculo em termos sociais e cognitivos, e não em termos exclusivamente sexuais. O relacionamento bebê-mãe é estudado mediante a observação directa dos bebês, e não pedindo-se a pacientes adultos que reconstruam suas primeiras experiências infantis em histórias de caso. Os neofreudianos ainda se identificam, de modo geral, como freudianos. Esse rótulo não pode ser aplicado aos dissidentes e descendentes, para os quais nos voltamos agora. Carll Jung (1875-1961) Jung, que entre outras coisas era exímio intérprete de cantos dos Alpes, foi considerado por Freud por algum tempo um filho adotivo e herdeiro aparente do movimento psicanalítico. Freud o chamara, numa carta, “meu sucessor e príncipe herdeiro” (McGuire, 1974, p. 218). Depois de a amizade com Freud desintegrar-se em 1914, Jung iniciou o que denominou psicologia analítica, que estava em total desacordo com a teoria freudiana. A Vida de Jung. Carll Jung cresceu numa pequena aldeia no norte da Suíça (Kesswill), perto das famosas cachoeiras do Reno. Segundo seu próprio relato, ele teve uma infância solitária, isolada e infeliz (Jung, 1961). Seu pai era um clérigo que aparentemente perdera a fé e muitas vezes estava de mau humor e irritado. Sua mãe sofria de distúrbios emocionais; tinha um comportamento errático, passando, num instante, de esposa feliz a um demônio enfeitiçado e murmurava coisas incoerentes. O casamento era infeliz. Jung aprendeu em tenra idade a não confiar nem acreditar em nenhum dos genitores e, por extensão, a não ter confiança no mundo exterior como um todo. Como resultado disso, ele se voltou para dentro, para o mundo dos seus sonhos, visões e fantasias, o mundo do seu inconsciente. Os sonhos e o inconsciente — e não o mundo consciente da razão — tornaram-se seus guias na infância e permaneceram como tais por toda a sua vida adulta. Em momentos críticos de sua vida, Jung resolvia problemas e tomava decisões com base no que o seu inconsciente lhe dizia em sonhos. Quando estava pronto para iniciar o colégio, a solução do problema do que estudar foi-lhe revelada assim. Ele se viu desenterrando ossos de animais pré-históricos e interpretou isso como significando que ele deveria estudar a natureza e a ciência. Esse sonho sobre cavar sob a superfície da terra, além de um outro de que ele se lembrava desde os três anos, no qual se encontrava numa caverna subterrânea, determinaram a direção que o seu futuro estudo da personalidade humana seguiria: ele iria se ocupar das forças inconscientes que estão sob a superfície da mente. Jung frequentou a Universidade da Basiléia, na Suíça, e formou-se médico em 1900. Interessado em psiquiatria, seu primeiro compromisso profissional foi um hospital de saúde mental de Zurique. O director era Engen Blenler, psiquiatra conhecido pelo seu trabalho no campo da esquizofrenia. Em 1905, Jung foi nomeado professor de psiquiatria na Universidade de Zurique, mas alguns anos depois demitiu-se para dedicar-se a pesquisar, escrever e manter uma clínica particu1ar . De início freudiano, Carll Jung veio a discordar de Freud no tocante a questões da mente inconsciente e da importãncia do sexo, e desenvolveu um sistema a que deu o nome de psicologia analftica. Em seu trabalho com pacientes, Jung resolveu não seguir o hábito freudiano de deitar o paciente num divã, dizendo que não era o seu desejo pó-lo na cama. Em vez disso, Jung e seu paciente sentavam-se em cadeiras uma diante da outra. Por vezes, ele fazia sessões terapêuticas a bordo do seu barco a vela, que deslizava alegremente pelo lago com o vento forte. Outras vezes, cantava para os pacientes e, outras vezes ainda, era deliberadamente rude. “Oh não!”, disse ele a um paciente que chegou na hora certa. “Não suporto a visão de mais um. Vá para casa e cure a si mesmo hoje” (Brome, 1981, p. 185). Jung se interessou pela obra de Freud em 1900, depois de ler A interpretação dos Sonhos, que descreveu como uma obra-prima. Em 1906, os dois tinham começado a se corresponder e, um ano depois, Jung foi para Viena encontrar Freud. Em seu encontro inicial, eles falaram com grande animação durante treze horas, um excitante começo para sua íntima mas curta amizade. Em 1909, Jung acompanhou Freud aos Estados Unidos, indo às cerimônias da Universidade Clark, em que os dois fizeram palestras. Ao contrário da maioria dos discípulos de Freud, Jung já estabelecera uma impressionante reputação profissional própria antes de se associar com o mestre. Ele era o mais bem conhecido dos primeiros conversos à psicanálise. Por isso, era talvez menos maleável, menos sugestionável, do que os analistas mais jovens que passavam a pertencer à família psicanalítica, muitos dos quais ainda estudavam medicina ou faziam pós-graduação, inseguros de suas identidades profissionais. Embora fosse por algum tempo discípulo de Freud, Jung nunca foi acrítico. Mas, no início de sua afiliação, ele tentou suprimir suas dúvidas e objeções. Quando escrevia A Psicologia do Inconsciente (Jung, 1912), ficou muito perturbado, percebendo que, quando essa declaração de sua posição fosse piiblicada, seu relacionamento com Freud seria prejudicado, pois as suas ideias diferiam em pontos importantes das do mestre. Durante meses, Jung não conseguia avançar com o livro, tamanha a sua aflição com a possível reação de Freud. É claro que ele terminou por publicar o livro — e o inevitável ocorreu. Em 1911, por insistência de Freud, e com a oposição dos membros vienenses, Jung tomouse o primeiro presidente da Associação Psicanalítica Internacional. Freud acreditava que o anti-semitismo poderia impedir o desenvolvimento do movimento psicanalítico se o chefe do grupo fosse judeu. Os analistas vienenses, quase todos judeus, se ressentiam e desconfiavam do suíço Jung, que era claramente o favorito de Freud. Eles não apenas tinham precedência no movimento como acreditavam que Jung era anti-semita. Pouco depois da eleição para a presidência, a amizade de Jung com Freud começou a mostrar sinais de tensão. Em A Psicologia do inconsciente e em palestras na Universidade Fordham em Nova Yorlç, Jung reduzira o papel do sexo em sua teoria e propusera uma concepção distinta de libido. Surgiram atritos com relação a essas diferenças profissionais e, em 1912, os dois concordaram em encerrar também sua correspondência pessoal. Eles romperam relações em 1914, quando Jung renunciou e afastou-se da Associação. A partir de 1913, quando tinha trinta e oito anos, Jung padeceu de um período de intenso abalo emocional que durou três anos; Freud passara por um período semelhante na mesma época da vida. Acreditando que estava enlouquecendo, Jung ficou sem poder realizar trabalhos intelectuais ou mesmo ler um livro científico (mas não parou de tratar pacientes). Resolveu seu problema essenciaimente da mesma maneira como Freud o havia resolvido; enfrentando sua mente inconsciente. Embora não analisasse sistematicamente seus sonhos, como Freud fizera, Jung seguia os impulsos do inconsciente tal como se revelavam em sonhos e fantasias. Assim como ocorrera com Freud, a crise emocional de Jung mais tarde tomou-se uma época de imensa criatividade, levando-o à formulação de sua peculiar abordagem da personalidade. Como fruto do seu interesse pela mitologia, Jung fez algumas expedições de campo à África e ao sudoeste dos Estados Unidos na década de 20, pretendendo estudar os processos mentais de povos pré-alfabetizados. Em 1932, foi nomeado professor da Universidade Politécnica Federal de Zurique, posição que manteve até que a sua saúde debilitada o fez demitir-se em 1942. Dois anos depois, foi fundada para ele, na Universidade da Basiléia, uma cadeira de psicologia médica, mas a doença o impediu de manter essa posição por mais de um ano. No entanto, permaneceu activo na pesquisa e na produção de trabalhos escritos pela maior parte dos seus oitenta e seis anos, publicando um espantoso número de livros. Na noite anterior à sua morte, ele disse a um amigo: “Vamos tomar um vinho realmente bom esta noite” (Wehr, 1987, p. 454).Ele sempre vivera a sua vida com bom gosto. A Psicologia Analítica Um ponto fundamental de diferença entre Jung e Freud vincula-se com a natureza da libido. Enquanto Freud a definia em termos predominantemente sexuais, Jung a considerava a energia vital generalizada de que o sexo era apenas uma parte. Para Jung, essa energia vital libidinal básica se exprime no crescimento e na reprodução, e também em outras atividades, a depender do que é mais importante para um individuo num momento particular. A recusa junguiana de considerar a libido como exclusivamente sexual deixou-o livre para dar interpretações diferentes ao comportamento que Freud só podia definir em termos sexuais. Para Jung, por exemplo, entre os três e os cinco anos de vida, que ele denominava fase pré-sexual, a energia libidinal serve às funções de nutrição e de crescimento e não tem nenhuma das nuanças sexuais da concepção freudiana desses primeiros anos. Jung também rejeitava o complexo de Édipo freudiano e explicava o apego da criança à mãe em termos de uma necessidade de dependência, com todas as satisfações e rivalidades associadas com a função materna de fornecer alimento. À medida que a criança amadurece e desenvolve o funcionalismo sexual, as funções de nutrição combinam-se com sentimentos sexuais. Para Jung, a energia libidinal só assume forma heterossexual depois da puberdade. Ele não negava a existência de fatores sexuais, mas reduzia o papel do sexo ao de um dos impulsos que compõem a libido. É fácil ver que as próprias experiências de vida de Jung influenciaram sua teoria que, como a de Freud, foi intensamente autobiográfica. Já observamos que a imersão pessoal de Jung no inconsciente pressagiava seu interesse profissional ulterior pelo tópico. Com relação ao sexo, as evidências também são altamente sugestivas. Jung não tinha como usar, nem precisava de um complexo de Édipo em sua teoria, porque isso não tinha relevância para a sua infância. Ele descrevera a mãe como uma mulher gorda e pouco atraente, e por isso nunca pôde compreender a insistência de Freud de que todo garotinho tinha anseios sexuais pela mãe. Ao contrário de Freud, Jung não desenvolveu nenhuma insegurança, inibição nem ansiedade sobre o sexo quando adulto, e não fez nenhuma tentativa de limitar suas actividades sexuais, também ao contrário de Freud. Na verdade, Jung teve alguns casos com pacientes e discípulas. Para Jung, que satisfazia livre e frequentemente suas necessidades sexuais, o sexo tinha um papel mínimo na motivação humana. Para Freud, acossado por frustrações e ansioso com seus desejos contrariados, o sexo tinha o papel central” (Schultz, 1990, p. 148). A segunda diferença básica entre as obras de Freud e Jung é a sua concepção da direção das forças que influenciam a personalidade humana. Freud via as pessoas como vítimas dos eventos da infância; Jung acreditava que somos moldados por nossas metas, esperanças e aspirações com relação ao futuro, bem como pelo nosso passado. Jung propunha que o comportamento humano não é determinado por inteiro pelas primeiras experiências da vida, estando sujeito a mudança em anos subseqüentes. Uma terceira diferença entre os dois é que Jung enfatizava mais o inconsciente. Ele tentava mergulhar mais profundamente na mente inconsciente, tendo-lhe acrescentado uma nova dimensão — as experiências herdadas dos seres humanos como espécie e as dos seus ancestrais animais (o inconsciente coletivo). Jung usava o termo psique para referir-se à mente, que segundo ele consistia em três níveis: a consciência, o inconsciente pessoal e o inconsciente coletivo. No centro da mente consciente está o ego, que se assemelha à nossa concepção de nós mesmos. A consciência inclui percepçães e lembranças, e é a via de contato com a realidade que nos permite adaptar- nos ao nosso ambiente. Jung acreditava, contudo, que se dera demasiada atenção à consciência, que ele julgava secundária diante do inconsciente. Ele comparava a parte consciente da psique com a porção visível de uma ilha. Existe uma parte maior desconhecida sob a pequena parte visível acima da linha da água, e foi nessa base oculta misteriosa que Jung concentrou sua atenção. Ele postulava dois níveis do inconsciente. Logo abaixo da consciência está o inconsciente pessoal, pertencente ao indivíduo. Ele consiste em todas as lembranças, impulsos, desejos, percepções fugidias e outras experiências da vida da pessoa que foram suprimidas ou esquecidas. Incidentes do inconsciente pessoal podem ser trazidos com facilidade à percepção consciente, o que indica que esse nível de inconsciência não é muito profundo. As experiências do inconsciente pessoal estão agrupadas em complexos. Trata-se de padrões de emoções, lembranças, anseios, etc., com temas comuns. Os exemplos se manifestam na pessoa como uma preocupação com alguma ideia, como o poder ou a inferioridade, que influencia o comportamento. Assim, um complexo é essencialmente uma personalidade menor que se forma no interior da personalidade total. Abaixo do inconsciente pessoal se encontra o terceiro e mais profundo nível de psique, o inconsciente coletivo, que o indivíduo não conhece e que contém as experiências acumuladas de todas as gerações precedentes, incluindo nossos ancestrais animais. O inconsciente colectivo consiste em experiências evolutivas universais e forma a base da personalidade. Como dirige todo o comportamento corrente, ele é considerado a mais potente força presente na personalidade. É importante notar que as experiências evolutivas no interior do inconsciente coletivo são, naturalmente, inconscientes; não as percebemos, não nos recordamos delas nem temos imagens suas, ao contrário do que ocorre com as experiências do inconsciente pessoal. Jung acreditava que a universalidade do inconsciente coletivo podia ser explicada pela teoria da evolução, mediante a semelhança de estruturas cerebrais presentes em todas as raças humanas. Na analogia junguiana da ilha, algumas pequenas ilhas que se elevam acima da superfície da água representam a mente consciente individual de algumas pessoas. A área de terra de cada ilha que está logo abaixo da água, e que de quando em vez é exposta pela acção das marés, representa o inconsciente pessoal de cada indivíduo. O leito do oceano, em que todas as ilhas estão, é o inconsciente colectivo. Jung enfatizou o poder de contribuição do inconsciente colectivo ao desenvolvimento da psique. Tendências herdadas contidas no inconsciente coletivo — aquilo que Jung denominou arquétipos — são determinantes preexistentes ou inatos da vida mental que dispõem a pessoa a se comportar de modo semelhante ao de ancestrais que se viram diante de situações análogas. Os arquétipos são vivenciados como emoções e outros eventos mentais, e estão tipicamente associados com experiências significativas da vida como o nascimento e a morte, com estágios particulares como a adolescência e com reações ao perigo extremo. Jung empreendeu uma extensa investigação das criações míticas e artísticas de várias civilizações e descobriu símbolos comuns a todas, mesmo em culturas tão amplamente separadas no tempo e no espaço que excluam a possibilidade de influência directa. Ele também descobriu o que considerou vestígios desses simbolos nos sonhos contados por seus pacientes. Todo esse material corroborava sua concepção de inconsciente colectivo. Quatro dos arquétipos descrítos por Jurig pareciam ocorrer mais frequentemente do que os outros. Eles estavam plenos de altos níveis de significado emocional, podendo ser remetidos a mitos antigos de diversas origens. Esses arquétipos principais, considerados por Jung sistemas distintos de personalidade, são a persona, a anima e o animus, a sombra e o self: A persona, o aspecto mais exterior da personalidade, oculta o eu verdadeiro. É a máscara que usamos nos contactos com os outros, representando-nos tal como queremos aparecer para a sociedade. A persona pode não corresponder à verdadeira personalidade do indivíduo. A noção de persona se assemelha ao conceito sociológico de desempenho de papel (role playing), em que podemos agir como pensamos que os outros esperam que ajamos em diferentes situações. Os arquétipos da anima e do animas refletem a ideia de que cada pessoa de um sexo exibe algumas das características do outro. A anima se refere às características femininas presentes no homem; o animus denota características masculinas na mulher. Tal como os outros arquétipos, esses advêm do passado primitivo da espécie humana, em que os homens e as mulheres absorveram algumas das tendências comportamentais e emocionais do outro sexo. O arquétipo da sombra, nosso eu mais sombrio, é a parte mais primitiva e animalesca da personalidade. Jung o considerava nosso legado racial de formas inferiores de vida. A sombra contém todos os desejos e actividades imorais, passionais e inaceitáveis. Jung escreveu que a sombra nos impele a fazer coisas que normalmente não nos permitiríamos. Uma vez que tenhamos feito uma dessas coisas, costumamos insistir que algo se apossou de nós. Jung afirmou que o salgo” é a parte primitiva da nossa natureza. Mas a sombra também tem um lado positivo: é a fonte da espontaneidade, da criatividade, da percepção e da emoção profunda, todas elas necessárias ao pleno desenvolvimento humano. Jung considerava o self o mais importante arquétipo do seu sistema. Equilibrando todos os aspectos do inconsciente, o self proporciona unidade e estabilidade à personalidade. Como representação da pessoa inteira, o self tenta promover a integração da personalidade e pode ser comparado com um impulso para a auto-realização ou auto-atualização. Por autoatualização, Jung designava a hannonia e a completude da personalidade, o desenvolvimento mais integral de todos os aspectos do self Jung acreditava que a auto-atualização não podia ser alcançada antes da meia-idade, e considerava esses anos (entre os trinta e cinco e os quarenta) essenciais para o desenvolvimento da personalidade, uma época de transição natural em que a personalidade passa por mudanças necessárias e benéficas. Vemos nessa crença, outro elemento autobiográfico da teoria de Jung. A meia-idade foi a época de sua vida em que ele acreditava ter alcançado a integração do seu self, a partir da resolução de sua crise neurótica. Assim, para ele, o estágio mais importante do desenvolvimento da personalidade não era a infância, ao contrário da vida e do sistema de Freud, mas a meia-idade, época de sua própria crise pessoal. O trabalho de Jung sobre as atitudes de introversão e extroversão é bem conhecido. Ele via essas modalidades de reação a diferentes situações como parte da mente consciente, definindo-as em termos da direção da energia libidinal. O extrovertido dirige libido para fora do eu, para eventos e pessoas do mundo exterior. Uma pessoa desse tipo é fortemente influenciada por forças do ambiente, sendo sociável e autoconfiante numa ampla gama de situações. A libido do introvertido é dirigida para o seu próprio interior. Uma pessoa introvertida é mais contemplativa, introspectiva e resistente a influências externas, menos confiante nas relações com os outros e com o mundo exterior e menos sociável do que a extrovertida. Ambas as atitudes opostas existem em algum grau em todas as pessoas, mas uma delas costuma ser mais pronunciada. Ninguém é totalmente extrovertido ou introvertido. A atitude dominante a qualquer momento dado pode ser influenciada pela situação. Por exemplo, de modo geral, as pessoas introvertidas podem tornar-se sociáveis e francas em situações que atraiam o seu interesse. Segundo a teoria de Jung, as diferenças de personalidade também se manifestam por meio das quatro funções, as maneiras como nos orientamos tanto diante do mundo objetivo exterior como diante do nosso mundo subjetivo interior. Essas funções são o pensamento, o sentimento, a sensação e a intuição. O pensamento é um processo conceitual que proporciona sentido e compreensão. O sentimento é um processo subjetivo de ponderação e avaliação. A sensação é a percepção consciente de objetos físicos. E a intuição envolve perceber de maneira inconsciente. Jung considerava o pensamento e o sentimento modalidades racionais de reação, visto envolverem a razão e o juízo. A sensação e a intuição são consideradas não racionais, pois dependem do mundo dos estímulos concretos e específicos e não envolvem o uso da razão. Em cada par de funções, somente uma pode ser dominante num dado momento. As funções dominantes podem se combinar com o domínio da extroversão ou da introversão para produzir oito diferentes tipos psicológicos. Jung desenvolveu o teste de associação de palavras como instrumento de diagnóstico e terapia para descobrir complexos da personalidade em seus pacientes. Ele iniciou essa pesquisa sobre a associação de palavras depois que um colega lhe falou do experimento de associação de Wilhelm Wundt. No procedimento de associação de palavras de Jung, o analista lê para o paciente uma lista de palavras, dizendo uma de cada vez, o paciente responde a cada palavra com a primeira palavra que lhe vier à mente. Jung media o tempo que o paciente levava para reagir a cada palavra, bem como as alterações da respiração e da condutividade eléctrica da pele, consideradas evidências de reações emocionais. Se uma palavra específica produzisse um longo tempo de resposta, irregularidades na respiração e uma mudança na condutividade da pele, Jung deduzia a existência de um problema emocional inconsciente vinculado com a palavra-estímulo ou com a réplica. Que Comentários a fazer? A obra de Jung tem tido alguma influência sobre a psicologia e a psiquiatria, mas principalmente sobre campos diversos como a religião, a história, a arte e a literatura. Muitos historiadores, teólogos e escritores o reconhecem como fonte de inspiração. De modo geral, no entanto, a psicologia científica tem ignorado sua psicologia analítica. Muitos dos seus livros não foram traduzidos para o inglês até os anos 60, e seu estilo não inteiramente claro tem impedido um entendimento completo de suas formulações. Seu desdém pelos métodos científicos tradicionais repele muitos psicólogos experimentais, para quem as ideias de Jung, com sua base mística e religiosa, têm ainda menos atrativo do que as de Freud. Além disso, as críticas a que nos referimos acerca das evidências corroboratórias da teoria de Freud também se aplicam ao trabalho de Jung. Também ele se apoiou na observação clínica e na interpretação, e não na investigação controlada de laboratório. Mas a psicologia analítica recebeu uma avaliação menos minuciosa do que a psicanálise freudiana, provavelmente porque a estatura de Freud no campo relegou Jung e outros a um plano secundário na competição por atenção profissional. A delineação por Jung dos oito tipos psicológicos tem estimulado consideráveis pesquisas. Tem particular imponãncia o Myers-Briggs Type Indicator (Indicador de Tipo MyersBriggs), um teste de personalidade elaborado nos anos 20 por Katharine Briggs e Isabel Briggs Myers. Ele se tomou um importante instrumento de pesquisa e avaliação. A obra de Jung sobre a introversão e a extroversão inspirou o psicólogo inglês Hans Eysenck a desenvolver o Maudsley Pei Inventory (Inventário de Personalidade Maudsley), um teste popular para medir essas duas atitudes. Estudos usando esses instrumentos forneceram algum apoio empírico às ideias de Jung e demonstram que ao menos algumas de suas noções são suscetíveis de testes experimentais. Tal como ocorreu com a obra de Freud, os aspectos mais amplos da teoria de Jung (como os complexos, os arquétipos e o inconsciente coletivo) resistem a tentativas de validação científica. Jung deu outras contribuições à psicologia. O teste de associação de palavras tornou-se uma técnica projetiva padrão e incentivou o desenvolvimento do Teste Rorschach. O conceito de auto-atualização (auto-realização) antecipou a obra de Abraham Maslow e de outros que, desde então, têm desenvolvido o tema de Jung. A sugestão junguiana de que a meia-idade é uma época crucial de mudança de personalidade foi incorporada por Maslow e Erik Erikson, tendo sido aceita por teóricos contemporâneos da personalidade como estágio desenvolvimental necessário (ver Levinson, 1978; Wrightsman, 1981). Apesar dessas contribuições, o grosso da obra de Jung não tem sido popular na psicologia. Suas ideias gozaram de uma explosão de atenção pública nos anos 70 e 80, ao que parece devido ao seu conteúdo místico. Treinamento formal em análise junguiana é oferecido em Nova York, São Francisco e Los Angeles, bem como em institutos junguianos na Europa e em Israel. Teorias Sociopsicológicas na Psicanálise: Freud foi influenciado pela perspectiva mecanicista e positivista que impregnou a ciência do século XIX. Perto do final do século XIX, contudo, novas disciplinas estavam oferecendo novas maneiras de conceber a natureza humana, formas que iam além dos quadros biológicos e fisicos de referência. A antropologia, a sociologia e a psicologia social estavam oferecendo evidências para sustentar a proposição de que os seres humanos são o produto das forças e instituições sociais que formam seu ambiente. Essas evidências sugeriam que os seres humanos deveriam ser estudados como seres sociais, e não como seres estritamente biológicos. À medida que os antropólogos publicavam seus estudos sobre diferentes culturas, ia ficando claro que alguns sintomas neuróticos e tabus presentes nas hipóteses freudianas não eram, ao contrário do que ele pensara, universais. Por exemplo, não existem tabus contra o incesto em todas as sociedades. Além disso, sociólogos e psicólogos sociais tinham descoberto que grande parte do comportamento humano parecia vir antes do condicionamento social do que de quaisquer tentativas de satisfazer necessidades biológicas. O espírito intelectual do tempo, estava pedindo uma revisão da concepção da natureza humana, mas Freud, para a consternação de alguns dos seus seguidores, apegarase à sua ênfase nos determinantes biológicos da personalidade. Analistas mais jovens, menos restringidos pela tradição, foram se afastando da posição psicanalítica ortodoxa e começaram a remoldar a teoria freudiana ao longo de linhas mais compatíveis com a orientação das ciências sociais. Sua ideia de que a personalidade é mais um produto do ambiente do que da biologia era consentânea com a cultura e o pensamento americanos, e apresentava uma imagem da natureza humana mais otimista do que a posição determinista de Freud. Discutiremos dois desses dissidentes que apresentaram suas próprias teorias sociopsicológicas:Alfred Adler e Karen Homey. Eles e outros sugeriram que o comportamento humano não é determinado por forças biológicas, mas pelos relacionamentos interpessoais a que a pessoa está exposta, particularmente na infância. Assim como as forças biológicas, também o papel da libido e de sua manifestação no complexo de Édipo, bem como os estágios psicossexuais do desenvolvimento, são minimizados em suas teorias. Para os teóricos sociopsicológicos, a ansiedade e outras expressões de perturbações emocional não se originam na libido, nos instintos nem no sexo, desenvolvendo-se, em vez disso, a partir dos primeiros relacionamentos sociais. Por conseguinte, não estamos condenados à ansiedade, como quer a teoria determinista de Freud, porque a ansiedade pode ser evitada por meio das experiências sociais apropriadas na infância. Segundo Freud, os nossos pensamentos e comportamentos são determinados por forças biológicas. Em contraste, os teóricos sociopsicológicos consideram o comportamento flexível e suscetível de ser conscientemente modificado pelo individuo. As instituições sociais também são flexíveis e abertas à mudança. Embora reconheçam que os costumes e padrões da sociedade só podem ser modificados gradualmente e com dificuldade, esses teóricos concordam que as pessoas são capazes de desenvolver o tipo de sistema social apropriado às suas necessidades. Alfred Adier (1870-1937) Costuma-se considerar Adier o primeiro proponente da forma sociopsicológica de psicanálise porque ele rompeu com Freud em 1911. Adler desenvolveu uma teoria em que o interesse social tem um papel relevante, e é o único psicólogo que tem um quarteto de cordas com o seu nome. A Vida de Adier. Alfred Adier nasceu numa família abastada de um subúrbio de Viena, Áustria. Sua infância infeliz foi marcada pela doença, pelo ciúme de um irmão mais velho e por sentimentos de ser franzino, feio e rejeitado pela mãe . Ele se sentia muito mais próximo do pai do que da mãe. Talvez tenha rejeitado o conceito freudiano do complexo de Édipo porque ele não refletia sua própria experiência infantil. Quando criança, Adler se esforçou muito para ter popularidade entre os seus colegas e, à medida que crescia, foi conseguindo um sentido de auto-estima e de aceitação dos outros que não encontrara no seio de sua família. No início, Adler era mau aluno, tão inapto que um professor disse ao seu pai que o único emprego para o qual o garoto prestava era o de aprendiz de sapateiro. Com persistência e dedicação, Adler foi do fundo do poço ao topo de sua classe. Tanto em termos académicos como sociais, ele se esforçava para superar suas desvantagens e inferioridade; assim, tomou- se um exemplo vivo de sua teoria da necessidade de compensar as próprias fraquezas. Os sentimentos de inferioridade, que formam o cerne do seu sistema, são um reflexo directo de suas próprias experiências infantis. Adler admitia essa dívida, confessando que “quem tem familiaridade com o trabalho da minha vida verá com clareza a concordância entre os factos da minha infância e os pontos de vista que exprimi” (Bottome, 1939, p. 9). Aos quatro anos, enquanto se recuperava de um ataque quase fatal de pneumonia, Adier decidiu ser médico. Formou-se na Universidade de Viena em 1895. Depois de se especializar em oftalmologia e praticar a clínica geral, transferiu-se para a psiquiatria. Em 1902, juntou-se ao grupo de discussão semanal de psicanálise formado por Freud, como um dos quatro membros fundadores. Embora trabalhasse próximo de Freud, seu relacionamento com ele não era pessoal. Freud disse certa vez que Adier o entediava. Nos anos seguintes, Adler desenvolveu uma teoria da personalidade distinta da de Freud em vários aspectos, tendo criticado abertamente a ênfase freudiana nos factores sexuais. Em 1910, Freud o indicou presidente da Sociedade Psicanalítica de Viena, ao que parece num esforço para reconciliar as crescentes diferenças entre eles, mas, em 1911, seu rompimento inevitável estava completo. Adler renunciou à presidência e rompeu oficialmente com a posição freudiana. A separação foi amarga. Adler descreveu Freud como um trapaceiro e disse que a psicanálise era ‘suja” (Roazen, 1975, p. 210). Freud referiu-se a Adler como “anor mal” e “enlouquecido pela ambição” (Gay, 1988, p. 223). 367 Adier foi médico do exército austríaco na Primeira Guerra, tendo organizado mais tarde clínicas de orientação infantil no sistema escolar vienense. Nos anos 20, seu sistema sociopsicológico, que ele denominou psicologia individual, atraiu comentários favoráveis da comunidade profissional, e muitos seguidores foram para Viena estudar com ele. Ele fez palestras em vários países e, em 1929, fez a primeira de várias visitas aos Estados Unidos. Em 1934, foi nomeado professor de psicologia médica da Escola de Medicina de Long Island, Nova York. Três anos depois, durante um exaustivo circuito de conferências, faleceu em Aberdeen, Escócia. Freud, respondendo a um amigo que exprimia tristeza pela morte de Adier, escreveu: Não entendo sua simpatia por Adier. Para um menino judeu de um subúrbio vienense. Affred Adier, que rompeu com Freud em 1911, considerava a motivação humana um esforço por atingir a superioridade e acentuava a importância dos fatores sociais no desenvolvimento da personalidade. A Psicologia Individual Adier desenvolveu seu sistema de psicologia individual ao longo de linhas sociais. Ele acreditava que o comportamento humano não é determinado por forças biológicas, mas por forças sociais. Sugeria que só podemos compreender a personalidade investigando os relacionamentos sociais e as atitudes que a pessoa tem para com os outros. Ele propôs que esse interesse social, que pode ser defmido como um potencial inato para cooperar com os outros a fim de alcançar alvos pessoais e societais, se desenvolve na infância por meio de experiências de aprendizagem. Tal como Freud, Adler reconhecia a importância dos primeiros anos formativos da infância, mas, como dissemos, seu foco eram as forças sociais, e não as biológicas. Ele também minimizava o papel do sexo na plasmação da personalidade (Adier, 1930). Outro ponto de diferença entre as teorias de Adler e Freud refere-se à importância da consciência: ao contrário de Freud, Adier acentuava os determinantes conscientes do comportamento. Ele considerava os humanos seres conscientes, cônscios de suas motivações. Para Freud, o comportamento humano era determinado por experiências passadas. Adier, por sua vez, acreditava que somos mais influenciados por aquilo que pensamos que o futuro nos reserva. Esforçar-se por atingir metas ou antecipar futuros eventos são elementos capazes de afetar o nosso comportamento presente. Por exemplo, quem vive temeroso da danação eterna após a morte tem um comportamento diferente do de quem não tem essa expectativa. Freud dividia a personalidade em partes distintas (id, ego e superego), mas Adler enfatizava a unidade e a consistência essenciais da personalidade. Ele propôs uma força propulsora dinâmica que canaliza os vários recursos da personalidade para um alvo premente. Esse alvo, para cuja consecução todos nos esforçamos, é a superioridade ou perfeição, que abrange o desenvolvimento, o aperfeiçoamento e a realização plenos do eu. Segundo Adier, o sexo não é o impulso dominante, mas apenas um entre muitos meios para atingir a superioridade ou a perfeição. Adier acreditava que essa luta pela superioridade, pelo aprimoramento do eu, é inata, manifestando-se em todos os aspectos da personalidade. Ela é responsável por todos os progressos e realizações humanas, tanto individuais como em termos da civilização. Observamos que Adler não concordava com a afirmação de Freud de que a base primária da motivação é o sexo. Adler acreditava que um sentimento generalizado de inferioridade é a força determinante do comportamento, ao que parece como tinha sido em sua vida. Inicialmente, Adler associava esse sentimento de inferioridade com partes deficientes do corpo. A criança com uma fraqueza orgânica hereditária tenta compensar o defeito superenfatizando a função defeituosa. Uma criança que gagueja pode, por meio da terapia da fala, tomar-se um grande orador; a criança com membros fracos pode, através do exercício intenso, alcançar a excelência como atleta ou dançarina. Mais tarde, Adier ampliou seu conceito e incluiu quaisquer deficiências físicas, mentais ou sociais, reais ou imaginadas. Ele também acreditava que a pequenez, a impotência e a total dependência da criança diante do seu ambiente produzem um sentimento de inferioridade vivenciado por todos. Consciente de sua inferioridade e da necessidade de superá-la, a criança também é impelida por essa luta pela superioridade ou perfeição. Para ele, esse processo de restrição e empuxo continua por toda a vida, impulsionando a pessoa a realizações cada vez maiores. Os sentimentos de inferioridade também apresentam vantagens para a pessoa e para a sociedade, pois levam a uma contínua melhoria. Mas, se na infância esses sentimentos forem acolhidos com mimo excessivo ou com rejeição, o resultado pode ser comportamentos com pensatórios expressos de modo anormal. A incapacidade de compensar adequadamente os sentimentos de inferioridade pode ocasionar o desenvolvimento de um complexo de inferioridade, que torna a pessoa incapaz de lidar com os problemas da vida. Segundo Adiar, a meta suprema do homem, atingir a superioridade, é universal, mas existem vários comportamentos mediante os quais cada um de nós pode alcançar essa meta. Demonstramos nossa maneira de lutar em modalidades distintas e desenvolvemos uma forma peculiar ou característica de reagir que Adier denominou estilo de vida. Esse estilo de vida envolve os comportamentos com os quais compensamos a inferioridade real ou imaginada. No exemplo da criança de corpo débil, o estilo de vida inclui as atividades, como o exercício ou a prática de esportes, que resultem no aumento do ânimo e da força física. Formado por volta dos quatro ou cinco anos, o estilo de vida se fixa e se torna difícil de mudar a partir de então; ele proporciona a referência no âmbito da qual todas as experiências posteriores são vivenciadas. Mais uma vez, vemos que Adler admitia a importância dos primeiros anos de vida, mas diferia de Freud em sua crença de que criamos conscientemente o nosso próprio estilo de vida ou eu. Adiar também se concentrava na família como factor de desenvolvimento da personalidade. Crianças com deficiências podem se considerar um fracasso, mas, por meio da compensação e com a ajuda de pais compreensivos, podem transformar inferioridades em forças. Crianças estimuladas em demasia pelos pais podem tomar-se egocêntricas. É improvável que desenvolvam interesse social; em vez disso, vão esperar que os outros acedam aos seus desejos. Crianças negligenciadas podem desenvolver estilos de vida que envolvem a busca de vingança contra a sociedade. O mimo e a negligência abalam nossa confiança em nossa capacidade de enfrentar as exigências da vida. Considera-se o conceito adleriano do poder criativo do eu o pináculo de sua teoria. Ele sugeriu que temos a capacidade de determinar nossa própria personalidade de acordo com o nosso estilo pessoal de vida. Esse poder criativo representa um princípio activo da existência humana comparável à noção de alma. Certas capacidades e experiências nos vêm por hereditariedade e pelo ambiente, mas é o modo como usamos e interpretamos activamente essas experiências que nos fornece a base da nossa atitude diante da vida. Isso significa que estamos conscientemente envolvidos no processo de dar forma à nossa personalidade e ao nosso destino. Para ele, podemos determinar o nosso próprio futuro, em vez de tê-lo determinado para nós pela experiência passada. Examinando a infância de seus pacientes, Adler se interessou pelo relacionamento entre a personalidade e a ordem de nascimento. Ele descobriu que a criança mais velha, a do meio e a mais nova, devido à sua posição na família, passam por experiências sociais distintas que resultam em diferenças de personalidades. A criança mais velha recebe muita atenção até ser destronada pelo nascimento do segundo filho. O primeiro filho pode então ficar inseguro e hostil, autoritário e conservador, com um forte interesse pela manutenção da ordem. Adier sugeriu que os criminosos, os neuróticos e os pervertidos costumam ser primogênitos. (Sigmund Freud era primogênito; Adler o considerava um típico filho mais velho.). Adler descobriu que o segundo filho é intensamente ambicioso, rebelde e ciumento, esforçando-se constantemente para superar o primogênito. (Adler era segundo filho e teve por toda a vida um relacionamento competitivo com o irmão mais velho, cujo nome era Sigmund.). Contudo, Adier considerava o segundo filho melhor ajustado do que o primogênito ou o caçula. Ele acreditava que este último era estragado pelos mimos e o que tinha mais probabilidade de exibir problemas de comportamento na infância e na idade adulta. Precisamos de Comentários caros estudantes? As teorias de Adier foram calorosamente recebidas por muitas pessoas insatisfeitas ou desgostosas com o quadro freudiano dos humanos como seres dominados por forças sexuais e determinados pelas experiências infantis. Afmal, é mais agradável considerar que podemos dirigir conscientemente o nosso desenvolvimento. Adier apresentava uma imagem satisfatória e otimista da natureza humana. Sua crença na importância dos factores sociais, com a relativa exclusão de determinantes biológicos, reforçou a tendência em ascensão das ciências sociais. Seu trabalho foi também o começo de uma reorientação semelhante na psicanálise, destinada a tomar seus princípios mais aplicáveis à diversidade de comportamentos humanos. Mas não faltaram críticos à psicologia individual de Adier. Muitos afirmam que suas teorias pecam pela superficialidade e por se basear em observações da vida cotidiana fundadas no senso comum. Outros consideram suas ideias argutas e perceptivas. Freud disse que o sistema de Adier era demasiado simples. Ele observou que são necessários dois anos para aprender psicanálise, por ser ela complexa, mas que as ideias de Adier podem ser ‘aprendidas em duas semanas, porque, com Adler, há muito pouco a aprender” (Sterba, 1982, p. 156). Adier respondeu que essa era exatamente a questão: ele precisara de quarenta anos para tornar sua psicologia simples. Também se alega que Adier não era um teórico coerente nem sistemático e que sua posição deixa muitas questões sem resposta. O que precisamente é a força criativa pela qual dirigimos o nosso comportamento? O que impede a pessoa de se reconciliar com sua inferioridade? Quais os papéis relativos da hereditariedade e do ambiente nesse processo? Além disso, as criticas dos psicólogos experimentais feitas a Freud e Jung também se aplicam a Adier. Suas observações dos pacientes não podem ser reproduzidas e verificadas, nem foram realizadas de modo controlado e sistemático. Ele não tentou confirmar a precisão dos relatos dos pacientes e, tal como Freud e Jung, não explicou os procedimentos mediante os quais analisou seus dados e chegou às suas conclusões. Embora muitos dos conceitos adlerianos resistam a tentativas de validação científica, sua noção de ordem de nascimento tem sido objecto de consideráveis pesquisas. Estudos revelam que os primogênitos têm alto grau de inteligência e necessidade de realização, e sustentam sua noção de que eles experimentam ansiedade quando destronados pela chegada do segundo filho (Belmont e Marolla, 1973; Breland, 1974; Schachter, 1963). Há evidências de pesquisas para a concepção de Adier de que os sonhos podem nos ajudar a resolver problemas correntes e para a sua ideia de que as nossas primeiras lembranças infantis podem fornecer alguma indicação sobre o nosso estilo de vida adulto (Grieser, Greenberg e Harrison, 1972; Jackson e Sechrest, 1962). De modo geral, a influência de Adier sobre a psicanálise pós-freudiana tem sido substancial. O trabalho dos psicólogos do ego, que se concentra mais nos processos racionais e conscientes do que nos inconscientes, segue a direcção proposta por Adier. Sua ênfase na acção das forças sociais sobre a personalidade pode ser vista no trabalho de Karen Horney, e o seu foco na unidade da personalidade se reflete na teoria de Gordon Allport. O destaque que dá ao poder criativo do eu como força capaz de dar forma ao próprio estilo de vida influenciou o pensamento do Abraham Maslow, que comentou que “Adier fica mais correcto a cada ano” (Maslow, 1970, p. 13). A influência de Adler se estende ao presente, como vimos na obra do teórico da aprendizagem social Julian Rotter. Alguns psicólogos têm sugerido que Adier estava muito além do seu tempo, que sua ênfase nas variáveis sociais e cognitivas é mais compatível com tendências da psicologia actual do que com a de sua época. As concepções de Adier continuam a influenciar psicólogos, psiquiatras, assistentes sociais e educadores. As pesquisas baseadas em sua teoria e terapia são publicadas na revista trimestral Individual Psychology: The Journal Adlerian Theory, Research, and Pratice. Institutos de treinamento adierianos funcionam em Nova York e em outras cidades americanas, e uma nova geração de adlerianos tem ampliado, desenvolvido e aplicado seu trabalho, particularmente na área do aconselhamento infantil. Karen Horney (1885-1952) Horney, uma das primeiras feministas, foi treinada na psicanálise freudiana em Berlim. Ela descreveu sua obra como uma modificação e extensão do sistema de Freud, e não como um esforço para suplantá-lo. A Vida de Horney Karen. Horney nasceu em Hamburgo, Alemanha. Seu pai era um devoto e melancólico capitão de navio muito mais velho que a sua mãe, uma mulher liberal e vivaz. A infância de Homey nada teve de idílico. Sua mãe a rejeitou em favor de um irmão mais velho (a quem Karen invejava por ser um menino), e seu pai costumava menosprezar sua aparência e inteligência, deixando-a com sentimentos de inferioridade, de falta de valor e de hostilidade. Essa carência de amor promoveu o que ela mais tarde denominou ansiedade básica, e dá outro exemplo da influência das experiências pessoais sobre a concepção do desenvolvimento da personalidade de um teórico. A partir dos catorze anos, Horney passou por uma série de choques adolescentes como parte de sua busca cada vez mais frenética do amor e da aceitação que não podia encontrar em casa. Aos dezessete, fundou um jornal que caracterizou como “um órgão virginal para super- virgens” e começou a andar por ruas frequentadas por prostitutas. “Na minha imaginação”, confidenciou ela ao seu diário, “não há ponto em mim que não tenha sido beijado por uma boca ardente. Na minha imaginação, não há depravação que eu não tenha experimentado até as últimas conseqüências” (Horney, 1980, p. 64). Apesar da oposição do pai, Horney ingressou na escola médica da Universidade de Berlim e se formou em 1913. Casou-se, teve três filhas e passou por um longo período de perturbação emocional. Sentia-se cada vez mais infeliz e oprimida, sofria de dores no estômago, tinha problemas sexuais com o marido e teve vários casos. Divorciou-se em 1927 e continuou sua busca incansável de amor pelo resto da vida. Entre 1914 e 1918, fez um treinamento psicanalítico ortodoxo no Instituto Psicanalítico de Berlim. No ano seguinte, tomou-se parte do corpo docente do Instituto e iniciou sua prática privada. Nos quinze anos seguintes, Homey escreveu muitos artigos técnicos, a maioria dedicada aos problemas da personalidade feminina, nos quais esboçou seu desacordo com certos conceitos freudianos. Em 1932, foi para os Estados Unidos como directora associada do Instituto de Psicanálise de Chicago. Prosseguiu com seu consultório particular e deu aulas no Instituto Psicanalítico de Nova York, mas um crescente desagrado com a teoria freudiana ortodoxa fê­ la romper com esse grupo. Ela fundou o Instituto Americano de Psicanálise, que dirigiu até a morte. O Desenvolvimento da Personalidade Consideremos de inicio os pontos de desacordo entre Horney e Freud. Ela acreditava que alguns dos pressupostos básicos de Freud tinham sido influenciados pela época em que ele trabalhara e que, nos anos 30 e 40, quando ela formulava seu sistema, sofrera dramáticas mudanças. Os padrões culturais eram diferentes, e as atitudes sobre o comportamento sexual e os papéis sexuais tinham sido revistas. As teorias freudianas já não eram compatíveis com o clima intelectual vigente. E essas diferenças eram não apenas de época como também de lugar. Horney desenvolveu suas teorias nos Estados Unidos, que tinham suas próprias atitudes populares acerca do sexo. Seus pacientes americanos diferiam dos seus primeiros pacientes europeus, e as diferenças entre eles só poderiam ser explicadas em termos de influências sociais, e não, como Freud dissera, por factores biológicos universais. Horney não concordava com Freud quanto ao facto de a personalidade depender de forças biologicas imutaveis. Embora aceitasse a ênfase freudiana na importância dos primórdios da infância, Karen Horney propôs a ansiedade básica, advinda do relacionamento pais-filhos, como a principal força que motiva as pessoas a procurar segurança e protecção. Ela negava a posição destacada dos factores sexuais, contestava a validade da teoria edipiana e descartava os conceitos de libido e da estrutura freudiana da personalidade. Opondo-se à crença de Freud de que as mulheres são motivadas pela inveja do pênis, ela afirmou que os homens são motivados pela inveja do útero, que eles invejam a capacidade feminina de gerar filhos. Horney acreditava que essa inveja do útero e o consequente ressentimento se manifestam inconscientemente nos homens por meio de comportamentos voltados para depreciar e diminuir as mulheres, para promover e manter sua condição inferior. Negando às mulheres direitos iguais, minimizando suas oportunidades de contribuir para a sociedade e depreciando seus esforços de realização, os homens tentam manter uma pretensa superioridade natural. Para Horney, a razão fundamental desse comportamento masculino é um sentido de inferioridade decorrente da inveja do útero. Homey e Freud também diferiam em suas concepções básicas da natureza humana. Horney escreveu: O pessimismo de Freud no que se refere a neuroses e ao seu tratamento veio das profundezas de sua descrença na bondade humana e no desenvolvimento humano. O homem, postulou ele, está fadado a sofrer ou a destruir... Minha convicção pessoal é a de que o homem tem tanto a capacidade como o desejo de desenvolver suas potencialidades e vir a ser um ser humano decente... Acredito que o homem possa mudar e continuar mudando enquanto viver (Horney, 1945, p. 19). Embora rejeitasse boa parte do sistema de Freud, Homey aceitava a noção de motivação inconsciente, assim como a existência de motivos emocionais e não racionais. O conceito fundamental da teoria de Homey é a ansiedade básica, definida por ela como ‘o sentimento que a criança tem de estar isolada e desamparada num mundo potencialmente hostil” (Horney, 1945, p. 41). Essa definição caracteriza seus próprios sentimentos quando criança. A ansiedade básica pode resultar de várias ações parentais com relação à criança, incluindo uma atitude de domínio, a falta de proteção e de amor e o comportamento errático. Qualquer coisa que perturbe o relacionamento seguro entre as crianças e os pais pode produzir a ansiedade básica. Logo, a ansiedade básica não é inata, mas resultado de forças sociais presentes no ambiente da criança. Em lugar dos instintos freudianos como as principais forças motivadoras, Horney considerava que o bebé impotente busca segurança num mundo ameaçador. Ela propôs que a força impulsora do comportamento humano é essa necessidade de segurança, de proteção e de libertação do medo. Partilhando com Freud a ideia de que a personalidade se desenvolve em tenra infância, ela sustentava também que a personalidade pode mudar ao longo da vida. Enquanto Freud detalhava estágios psicossexuais do desenvolvimento, Homey concentrava-se na maneira como a criança em crescimento é tratada pelos pais. Ela contestava fases de desenvolvimento universais, como os estágios oral ou anal, sugerindo que, se a criança desenvolvia alguma tendância desse tipo, isso se devia aos comportamentos dos pais. Nada no desenvolvimento da criança era visto como universal; tudo dependia de factores culturais, sociais e ambientais. Horney tentou demonstrar que os conflitos atribuidos por Freud a fontes biológicas poderiam ser atribuidos, em vez disso, a forças sociais. Assim, ela se concentrou nas primeiras experiâncias infantis que envolvem a interação parental com a criança, já que os pais podem tanto satisfazer como frustrar suas necessidades de egurança e proteção. O ambiente que os pais proporcionam à criança e a maneira como esta reage a ele formam a estrutura de sua personalidade. Observamos que a ansiedade básica advém do relacionamento pai-filho. Quando essa ansiedade social ou ambientalmente produzida se manifesta, a criança desenvolve várias estratégias cotnportamentais para enfrentar os sentimentos resultantes de desamparo e insegurança, respondendo às atitudes e comportamentos parentais. Se alguma estratégia comportamental da criança se tomar uma parte fixa da personalidade, ela é denominada necessidade neurótica, uma forma de defesa contra a ansiedade. Horney postulou dez necessidades neuróticas, incluindo as de afeição, de realização pessoal e de autosuficiência. Em escritos ulteriores, ela agrupou as dez necessidades em três categorias: (1) o tipo submisso (movimento de aproximação das pessoas, como na necessidade de amor); (2) o tipo distante (movimento de afastamento das pessoas, como na necessidade de autosuficiência); e (3) o tipo agressivo (movimento contra as pessoas, como na necessidade de poder). O movimento de aproximação das pessoas envolve a aceitação da impotência e a tentativa de obter o afeto dos outros e de depender deles; essa é a única maneira que permite à pessoa sentir-se segura com os outros, o movimento de afastamento das pessoas envolve permanecer distante dos outros para evitar toda situação de dependência. O movimento contra as pessoas envolve hostilidade, rebelião e agressão contra os outros. Horney acreditava que nenhuma dessas necessidades ou tipos constitui um modo realista de enfrentar a ansiedade. As próprias necessidades podem dar origem a conflitos por causa de sua incompatibilidade. Uma vez que a pessoa estabeleça uma estratégia comportamental para enfrentar a ansiedade, esse comportamento deixa de ter flexibilidade suficiente para permitir modalidades alternativas de expressão. Quando um comportamento fixo é inadequado para uma situação particular, a pessoa fica incapaz de mudar em resposta às exigências da situação. Esses comportamentos solidamente estabelecidos intensificam as dificuldades da pessoa por que permeiam toda a personalidade, “abrangendo não apenas a relação da pessoa com os outros como tambem sua relação consigo mesma e com a vida em geral” (Homey, 1945, p. 46). Ela invocou o conceito de auto-imagem idealizada, que, num certo sentido, proporciona um falso quadro da personalidade. Trata-se de uma máscara imperfeita e enganosa que impede as pessoas neuróticas de compreender e aceitar seus verdadeiros eus. Ao envergar a máscara, os neuróticos negam a existência de seus conflitos interiores. Os neuróticos vêem como genuínas as auto-imagens idealizadas, e essas imagens permitem acreditar que são superiores às pessoas que de facto são. Homey acreditava que os conflitos neuróticos não são inatos nem inevitáveis, mas surgem de situações indesejáveis na infãncia. Eles podem ser evitados se a vida familiar da criança for caracterizada pela generosidade, pela compreensão, pela segurança e pelo amor. Há necessidade de Comentários? O optimismo de Horney quanto à possibilidade de se evitarem conflitos neuróticos foi bem recebido por psicólogos e psiquiatras como um alívio para o pessimismo da teoria freudiana. Além disso, sua contribuição à psicologia é digna de nota porque ela introduziu um modelo da personalidade que tem como base os factores sociais e atribui pouco ou nada aos factores inatos. Sua teoria da personalidade pode ser mais fraca do que a de Freud em termos de clareza, coerência interna e desenvolvimento formal. Muitos psicólogos acreditam que teria sido mais fácil aceitar ou rejeitar a teoria freudiana do que tentar reformulá-la como Homey fez. Seu afastamento da doutrina freudiana básica é tão radical que o seu sistema é mal visto pelos psicanalistas ortodoxos. Embora não comentasse directamente o trabalho de Horney, Freud disse dela desta feita: “ela é capaz, mas maliciosa” (Bianton, 1971, p. 65). As evidências da teoria de Horney, tais como as de Freud, Jung e Adier, vêm de observações clínicas, estando sujeitas aos problemas de credibilidade científica já aludidos. Poucas pesquisas foram feitas sobre os conceitos do seu sistema, e alguns consideram isso uma grande limitação do seu trabalho. Contudo, as pesquisas citadas que refutaram as noções freudianas de que as mulheres têm superegos inadequadamente desenvolvidos e concepções inferiores do corpo, podem ser tomadas como apoio para alguns dos pontos de vista de Homey. Mesmo privada de um grupo leal de discípulos ou de uma revista onde desenvolver e divulgar suas idéias, Horney tem causado um impacto considerável com suas obras. A Clínica Karen Horney e o Instituto Psicanalítico Karen Homey (um centro de treinamento para analistas) são actuantes na cidade de Nova York. Com o movimento feminista que teve início nos anos 60, seus livros tiveram renovada a sua popularidade. São os seus escritos sobre a psicologia feminina que hoje constituem sua principal contribuição. “Se ela não tivesse escrito nada mais do que isso”, observou um biógrafo, “esses documentos teriam conferido a Homey um lugar importante na história da psicanálise” (Quinn, 1987, p. 211). Horney foi uma feminista ardente e pioneira, e muitas de suas posições, expressas há mais de cinqüenta anos, têm um forte acento contemporâneo. Em 1934, ela contrastou a mulher tradicional, que procura sua identidade no casamento e na maternidade, com a mulher moderna, que busca sua identidade numa carreira. Esse conflito entre o amor e o trabalho, tal como ela o via, caracterizou sua própria vida. Horney concentrou-se no trabalho, que lhe proporcionou enorme satisfação, mas continuou, por toda a vida, a buscar o amor. Seu dilema é tão intenso nos anos 90 quanto o foi para ela nos 30, e ela lutou vigorosamente para que as mulheres tivessem o direito de escolher, de tomar suas próprias decisões diante das exigências impostas por uma sociedade dominada pelos homens. Os Descendentes : Vimos que a teoria psicanalítica freudiana não permaneceu por muito tempo como a única abordagem da compreensão da personalidade humana. As alterações introduzidas pelos neofreudianos leais, por Carl Jung e pelos teóricos sociopsicológicos representam algumas alternativas desenvolvidas no curso da vida de Freud. A área da teoria e da pesquisa da personalidade se desenvolveu imensamente nos anos seguintes e redundou em muitas perspectivas conflitantes. Os manuais contemporâneos sobre a personalidade costumam discutir quinze ou mais teorias plenamente formuladas. Embora difiram tanto em termos específicos como no tocante a generalidades, essas abordagens têm uma herança comum: todas devem sua origem e sua forma, em alguma medida, aos esforços fundadores de Sigmund Freud. Freud serviu, do lado psicanalítico da história da psicologia, ao mesmo propósito a que Wilhelm Wundt serviu do lado experimental: como fonte de inspiração e como força a que se opor. Toda estrutura, concreta e teórica, depende da solidez dos seus fundamentos, e Freud, assim como Wundt, forneceu um vigoroso e desafiador alicerce a partir do qual construir. Como exemplos da evolução da teoria da personalidade desde a época de Freud, discutiremos as obras de três descendentes: Gordon Allport, Henry Murray e Erik Erikson. Gordon Allport (1897-1967) No curso de uma longa e produtiva carreira em Harvard, Gordon Allport, mais do que qualquer outra pessoa, tornou o estudo da personalidade uma parte academicamente respeitável da psicologia. A área da personalidade não era considerada formalmente parte da psicologia até ele publicar Personality: a Psychological Interpretation (A Personalidade: Uma Interpretação Psicológica) em 1937. Allport, que nunca foi psicanalisado nem manteve prática privada, empreendeu o estudo da personalidade a partir do ambiente clínico e o levou para a universidade. Quando criança, Allport sentia-se isolado e rejeitado por outras crianças, mas sua vida familiar era feliz e marcada pela afeição e pela confiança. Ao contrário de Freud e dos primeiros pós-freudianos, ele não parece ter tido nenhuma experiência infantil digna de nota que tenha afetado diretamente sua concepção adulta da personalidade. Talvez por isso tenha preferido abordar o campo de um ponto de vista intelectual e académico, e não de uma perspectiva mais pessoal através da psicanálise. Entre sua graduação e pós-graduação em Harvard, Allport viajou por algum tempo. Em Viena conheceu Sigmund Freud, um evento que teve algum impacto em sua abordagem da personalidade. Introduzido no gabinete do grande homem, o jovem Allport não conseguiu pensar em nada para dizer. Freud ficou imóvel, olhando para ele, esperando que Allport começasse a conversa. Finalmente, o rapaz começou a relatar um incidente que ocorrera no bonde naquela manhã envolvendo um garoto com um medo óbvio e extremo de sujeira. Quando Allport terminou a história, Freud o olhou em silêncio por um momento e então perguntou: ‘Esse garoto por acaso era você?” Freud estava exprimindo sua crença de que Allport revelava seus próprios conflitos interiores com essa história (Allport, 1968, pp. 383-384). Um psicólogo sugeriu que a pergunta de Freud a Allport foi arguta e bem precisa. “Allport era de fato uma pessoa limpa, meticulosa, organizada e pontual — possuía muitas características associadas por Freud com a personalidade compulsiva” (Pervin, 1984, p. 267). Allport ficou abalado com a pergunta de Freud. Começou a suspeitar que a psicanálise se concentrava em demasia no inconsciente, negligenciando os motivos conscientes, e se lançou à formulação de uma concepção da personalidade distinta da de Freud. Ele minimizou o papel do inconsciente em adultos normais, alegando que eles funcionam em termos mais racionais e conscientes. Só os neuróticos, disse ele, são influenciados significativamente pelo inconsciente. Allport também discordava de Freud quanto ao impacto das experiência infantis sobre os conflitos da idade adulta, insistindo que somos muito mais influenciados pelas experiências presentes e pelas nossas esperanças com relação ao futuro do que pelo passado. outra diferença importante é a convicção de Allport de que a única maneira de investigar a personalidade é estudar adultos normais, e não neuróticos. Ao contrário de Freud, ele não acreditava na existência de uma continuidade entre pessoas normais e neuróticas. Ele afirmava que não havia semelhanças entre indivíduos normais e neuróticos, não havendo portanto bases para comparação. Acentuando a peculiaridade de cada personalidade individual. Allport não acreditava que houvesse leis universais passíveis de aplicação a todos. Para Allport, o cerne de qualquer teoria da personalidade é o tratamento da motivação. Para explicar a motivação no adulto normal, ele propôs o conceito de autonomia funcional, a ideia de que um motivo não tem relação funcional com nenhuma experiência infantil. Os motivos humanos independem das circunstâncias originais em que apareceram. Pode-se fazer uma analogia com uma árvore, que já não tem relação funcional com a semente da qual veio. A árvore se torna autodeterminante, assim como o ser humano adulto. Por exemplo, quando começamos a nossa carreira, trabalhamos duro, talvez motivados para alcançar as metas do dinheiro e da segurança no emprego. Anos mais tarde, tendo alcançado o sucesso e tendo segurança fmanceira, podemos continuar a trabalhar duro, mas por outras razões, porque as nossas metas originais já foram alcançadas. A motivação adulta, ao ver de Allport, não pode ser remetida à infância, devendo ser compreendida apenas em termos do nosso comportamento e das nossas intenções presentes. O termo de Allport para o eu é o proprium, que é usado no sentido de ser apropriado. O eu é aquilo que pertence a cada um de nós ou é apropriádo para cada um de nós. Ele inclui tudo o que nos é peculiar, que nos distingue de todos os outros, constituindo um aspecto importante e consciente da personalidade. O propriwn se desenvolve através de sete estágios entre a infância e a adolescência. Esses estágios desenvolvimentais não têm carácter psicossexual nem envolvem conflitos freudianos centrados nas zonas erógenas do corpo. Em vez disso, os relacionamentos sociais, em particular com a mãe, são cruciais no desenvolvimento do propriwn. O estudo de Allport sobre os traços de personalidade, o primeiro empreendido nos Estados Unidos, começou com sua dissertação de doutorado. Ele distinguiu entre traços, que podem ser comuns a qualquer número de pessoas, e disposições pessoais, que são as características ímpares de cada pessoa. É possível inferir os dois a partir da observação do comportamento ao longo de um período de tempo, procurando-se as consistências e regularidades. Allport postulou três tipos de traços: (1) traços cardeais, que são paixões que dominam todos os aspectos da vida; (2) traços centrais, que são temas comportamentais, como a agressividade ou a sentimentalidade; e (3) traços secundários, que são comportamentos exibidos menos frequente e consistentemente do que os outros traços. Sua teoria influenciou mais a psicologia do que o trabalho dos primeiros psicanalistas. Não inspirou, no entanto, muitas pesquisas, dada a dificuldade de traduzir seus conceitos . Gordon Allport destacou a peculiaridade da personalidade individual e tornou a teoria da personalidade parte importante da psicologia acadêmica. proposições específicas passíveis de ser testadas em condições de laboratório. A mais notável pesquisa realizada pelo próprio Allport se ocupava do comportamento expressivo, as expressões faciais, inflexões vocais, gestos e maneirismos que tendem a revelar, a um observador treinado, várias facetas da personalidade. Afirmam os críticos que o facto de Allport focalizar exclusivainente o indivíduo torna impossível generalizar de uma pessoa para a outra e formular leis do comportamento humano. Contudo, seu trabalho em termos da definição e da avaliação de traços é considerado uma contribuição significativa ao estudo da personalidade. Seus livros são claros e seus conceitos, de fácil compreensão. Ele desenvolveu um teste psicológico, o Estudo de Valores, para medir os valores do indivíduo. Esse teste provou ser um recurso bem-sucedido de avaliação para pesquisas, aconselhamento e seleção de pessoal, sendo tido como um útil desenvolvimento de sua teoria. Allport recebeu o Gold Medal Award da Fundação Psicológica Americana e o Distinguished Scientific Contribution Award da Associação Psicológica Americana; foi também presidente da APA. Henry Murray (1893-1988). Enquanto a teoria da personalidade de Allport constituía uma completa rejeição da psicanálise freudiana, o sistema de Murray, que ele denominou personologia, teve como base a teoria de Freud. Tal como Allport, Murray preferiu estudar a personalidade num ambiente universitário, e não numa clínica. Embora tivesse se submetido à psicanálise (e dito que o seu analista ficou entediado), ele não clinicou, preferindo investigar a personalidade humana por meio do estudo intensivo de sujeitos normais. A infância de Murray teve como destaque a rejeição por parte da mãe, uma grande sensibilidade diante dos sofrimentos alheios e a compensação adleriana de defeitos físicos (gagueira e inépcia nos esportes). Depois de graduar-se na escola de medicina da Universidade Colúmbia. Murray fez residência em cirurgia, realizou pesquisas bioquímicas e doutorou-se nessa área na Universidade Cambridge inglesa — certamente uma das rotas mais cheias de rodeios para uma carreira em psicologia. Ele fizera apenas um curso de psicologia na faculdade e, pelo que contou, na segunda aula começou a procurar a saida mais próxima. O curso seguinte a que esteve presente foi o que ele mesmo deu anos depois. Ao que parece, Murray chegou à psicologia em consequência de uma crise pessoal. Ele se apaixonou por uma mulher mais jovem, mas não queria deixar a esposa. A instâncias de sua amante, foi a Zurique consultar Carl Jung. Na época, Jung estava tendo um caso com uma mulher mais jovem, que mantinha abertamente enquanto vivia com a esposa e a família. Ele aconselhou Murray a fazer o mesmo, e este seguiu o conselho durante muitos anos. Assim, Jung não somente resolveu o dilema pessoal de Murray como o impeliu a fazer uma carreira em psicologia. Jung lhe mostrou que a psicologia, em especial o estudo do inconsciente, poderia fornecer as respostas aos problemas da vida. “Os grandes portões do mundo das maravilhas se abriram com a força de uma enchente”, escreveu Murray sobre a época do seu contato com Jung. “Eu tinha experimentado o inconsciente” (Murray, 1940, p. 153). Em 1927. Murray passou a fazer parte da Clínica Psicológica de Harvard, que foi formada especificamente para estudar a personalidade. Permaneceu em Harvard o resto da sua carreira, exceto nos anos da Segunda Guerra, quando estabeleceu um programa de avaliação para o Escritório de Serviços Estratégicos (um precursor da CIA). Esse programa, em que os candidatos eram observados em situações concretas de tensão, redundou na abordagem do centro de avaliação para seleção de executivos hoje usada amplamente na iniciativa privada e no governo. Ele oferece um notável exemplo da aplicação prática de uma técnica de avaliação originalmente empregada para fins de pesquisa pura. Não surpreende, dado seu treinamento em medicina e bioquímica, que Murray preferisse enfatizar o funcionamento fisiológico em sua relação com a personalidade. Ele acentuou o conceito de redução de tensão, que considerava uma lei primária do comportamento humano, tal como Freud fizera. Também seguindo Freud, Murray chamou a atenção para a importância do inconsciente e do impacto das experiências infantis sobre o comportamento adulto. Seu sistema incorporava o id, o ego e o superego, se bem que com alguma modificação da posição freudiana ortodoxa. Murray dividia a personalidade nessas três estruturas básicas — id, ego e superego (Murray, 1938). O id contém nossas tendências impulsivas, inatas, e fornece a energia para o funcionamento da personalidade, uma concepção virtualmente idêntica à de Freud. Contudo, além de pulsões primitivas e luxuriosas, o id no sistema de Murray também contém tendências socialmente desejáveis como a empatia, a identificação e formas de amor. Embora partes do id devam ser suprimidas para que ocorra o desenvolvimento normal, outras partes devem poder expressar-se plenamente. Podemos ver aqui a influência do conceito junguiano do arquétipo da sombra, que também contém qualidades desejáveis e indesejáveis. No sistema de Murray, assim como na obra dos psicólogos do ego, o ego assume um papel mais activo na determinação do comportamento do que o faz na psicanálise freudiana. Murray acreditava que o ego não se limita a ser servo do id; ele também é um organizador consciente do comportamento. Ele age para suprimir impulsos indesejáveis do id e facilita a expressão dos impulsos desejáveis deste último. Murray aceitava a ideia de Freud de que o superego representa a internalização de valores culturais e de que os indivíduos julgam seu próprio comportamento com base nesses valores. Mas discordava de Freud acerca das forças que moldam o superego e do período em que ele se forma. Para Murray, o superego não é influenciado apenas pelos ensinamentos dos pais, mas pelos nossos colegas e pela literatura e mitologia da sociedade. Além disso, em vez de fixar-se aos cinco anos de idade, o superego continua a se desenvolver ao longo da vida. A motivação ocupa o lugar central na teoria da personalidade de Murray. Sua classificação das necessidades para explicar a motivação é a sua contribuição mais significativa à psicologia. As necessidades envolvem uma força química no cérebro que organiza o funcionamento intelectual e perceptivo. Elas despertam níveis de tensão no interior do organismo que só podem ser reduzidos pela satisfação das necessidades. Assim, as necessidades activam o comportamento, dirigindo-o de todas as maneiras necessárias para trazer a satisfação e a redução da tensão. A pesquisa de Murray identificou vinte necessidades, entre elas a realização, a afiliação, a agressão, a autonomia e o domínio. Tal como Freud, Murray acreditava que a personalidade se desenvolve por meio de uma série de estágios na infância. Cada estágio se caracteriza por alguma condição que produz prazer, e cada um deles deixa sua marca na personalidade na forma de um complexo, que é um padrão normal de comportamento que afeta inconscientemente o desenvolvimento ulterior da pessoa. As condições prazerosas da infância e seus complexos se assemelham a alguns dos estágios psicossexuais do desenvolvimento proposto por Freud: (1) a existência segura no interior do útero (o complexo de claustro); (2) o júbilo sensual da nutrição através do ato de sugar enquanto se é sustentado (o complexo oral); (3) o prazer resultante da defecação (o complexo anal); (4) o prazer que acompanha o ato de urinar (o complexo uretral); e (5) os prazeres genitais (o complexo da castração). A classificação de necessidades propostas por Murray foi a base do seu Thematic Apperception Test (Teste de Apercepção Temática — TAT), que ele desenvolveu com Christiana Morgan. Essa técnica projetiva tem amplo uso em pesquisas para avaliar aspectos da personalidade, sendo também empregada no diagnóstico clínico e na seleção de pessoal. O conceito de técnica projetiva deriva do mecanismo de defesa freudiano da projeção, em que a pessoa projeta impulsos perturbadores em outrem. No TAT, a pessoa projeta esses impulsos nas figuras de uma série de quadros ambíguos. Outro teste popular, o Edwards Personal Preference Schedule (Escala de Preferências Pessoais de Edward), é usado para medir quinze das necessidades propostas por Murray. O Jackson Personality Research Form (Formulário Jackson de Pesquisa da Personalidade) avalia traços formulados a partir da relação de necessidades de Murray. A teoria de Murray tem gerado consideráveis pesquisas sobre necessidades específicas e sobre as técnicas que ele desenvolveu para avaliar a personalidade. Boa parte dessa pesquisa corrobora suas ideias, em especial no tocante às necessidades de afiliação e de realização. Mas há pouco apoio científico para outros aspectos de sua teoria. Em reconhecimento às suas contribuições para o estudo da personalidade, Murray recebeu o (JoId Medal Award, da Fundação Psicológica Americana, e o Distinguished Scientific Contribution Award, da Associação Psicológica Americana. Erik Erikson (1902) Erik Erikson foi treinado em psicanálise ortodoxa por Anua Freud. Ele desenvolveu uma abordagem popular da personalidade que conserva muita coisa do sistema freudiano, ao mesmo tempo em que o estende de várias maneiras. Erikson ampliou a questão dos estágios do desenvolvimento, afirmou que a personalidade continua a se desenvolver ao longo da vida e reconheceu o impacto de forças sociais, históricas e culturais sobre a personalidade. Erikson é bem conhecido pelo seú conceito de crise de identidade, uma ideia que pode ter surgido das crises pessoais por que passou em seus primeiros anos. “Meus melhores amigos insistem”, escreveu ele, “que eu precisava dar um nome a essa crise e vê-la em todas as outras pessoas a fim de chegar de facto a um acordo com ela em mim mesmo” (Erikson, 1975, pp. 25-26). A primeira crise de Erikson envolveu o seu nome. Por muitos anos, ele acreditou que seu sobrenome era Homburger, sobrenome do padrasto de quem Erikson acreditava ser filho natural. Ele mudou seu sobrenome para Erikson aos trinta e nove anos, quando se tornou cidadão dos Estados Unidos. A segunda crise de identidade ocorreu em seus anos escolares na Alemanha. Ele se considerava alemão, mas seus colegas o rejeitavam porque ele era judeu. Ao mesmo tempo, seus colegas judeus o desprezavam por causa de sua loura aparência ariana. A terceira crise ocorreu depois que ele terminou o colégio. Ele se afastou da sociedade e, durante vários anos, vagou pela Europa em busca de sua identidade. Aos vinte e cinco anos, aceitou um emprego de professor numa pequena escola de Viena que fora fundada para os filhos dos pacientes e amigos de Sigmund Freud. Ele se casou e fez seu treinamento em psicanálise, tendo dito que então encontrou tanto uma identidade pessoal como profissional. Embora sua educação formal tivesse parado no colégio (ele se inscreveu num programa de doutorado na Universidade Harvard, mas, tendo sido reprovado no primeiro curso, não continuou), Erikson terminou por dar aulas em Harvard e se tornou um dos mais influentes psicanalistas dos tempos modernos. Sua teoria segue uma abordagem desenvolvimental ou de duração de vida, já que se concentra no crescimento da personalidade no decorrer de toda a vida indivídual. O tema central do desenvolvimento da personalidade é a busca de uma identidade de ego. Erikson dividiu a duração da vida em oito estágios pskossociais de desenvolvimento, cada um dos quais envolve um conflito ou crise que tem de ser resolvido. Esses conflitos surgem em cada ) estágio desenvolvinental à medida que o ambiente faz novas exigências. A pessoa vê-se diante de uma escolha entre dois modos de lidar com a crise, um modo adaptativo e um modo inadaptativo. Somente quando a crise de cada estágio é resolvida, tendo a personalidade, portanto, se modificado, a pessoa tem força suficiente para enfrentar o próximo estágio de desenvolvimento. Os primeiros estágios propostos por Erikson se assemelham aos estágios oral, anal e fálico e ao período de latência de Freud, embora Erikson enfatize antes os factores sociais do que os biológicos e sexuais. Os quatro últimos estágios do desenvolvimento são próprios do sistema de Erikson e levam o indivíduo da adolescência à velhice, um período bastante ignorado por Freud. Cada um desses estágios de crescimento, embora carregado de tensão o bastante para ser considerado uma crise, pode ter um desfecho positivo se for resolvido de maneira adaptativa. Além disso, a pessoa que fracassar em algum deles e ficar com uma forma desajustada de reagir pode corrigir isso por meio da adaptação bem-sucedida num estágio ulterior. Há, pois, esperança para o futuro em todos os estágios do crescimento da personalidade. Erikson acreditava que podemos influenciar e dirigir conscientemente nosso desenvolvimento em cada estágio. Isso contrasta com a concepção freudiana de que somos produto das experiências infantis e incapazes de mudar mais tarde. Embora reconhecesse que as influências infantis são importantes e podem até ser traumáticas. Erikson afirmava que os eventos de estágios ulteriores podem se contrapor às experiências infantis negativas e superá-las, contribuindo para a nossa meta última: o estabelecimento de uma identidade de ego positiva. A questão da nossa identidade básica de ego deve ser resolvida no período da adolescência (mais ou menos entre os doze e os dezoito anos). Trata-se de um período de consolidação em que a pessoa deve formar uma auto-imagem que faça sentido e proporcione continuidade com o passado e uma orientação para o futuro. Erikson sugeriu que o processo de moldar e aceitar a própria identidade é difícil e cheio de ansiedade. O adolescente deve experimentar diferentes papéis e ideologias para determinar os mais adequados. As pessoas que alcançam um forte sentido de identidade estão equipadas para enfrentar os problemas da idade adulta. Diz-se que os que não conseguem fazê-lo passam por uma crise de identidade. Eles podem fugir da sequência de vida normal (educação, emprego, casamento), como o fez o próprio Erikson, e, talvez, até procurar uma identidade negativa em comportamentos socialinente inaceitáveis como o vício das drogas ou o crime. Um aspecto controverso da obra de Erikson é o facto de ele concordar com Freud que as diferenças de personalidade entre os sexos têm base biológica e advêm da posse ou da falta de um pênis. Erikson baseou suas conclusões em pesquisas com crianças, notadamente um estudo em que meninos e meninas entre os dez e os doze anos construiam cenas a partir de figuras e blocos de madeira (Erikson, 1968). As construções das meninas eram estruturas baixas e estáticas para as quais os animais e as figuras masculinas tentavam forçar o caminho. As construções dos meninos eram orientadas para a ação e apresentavam estruturas altas e imponentes. Erikson interpretou essas construções de brinquedo como expressão simbólica dos órgãos genitais dos meninos e meninas. Ele concebeu, contudo, que as diferenças de personalidade poderiam ser o resultado do treinamento de papéis sexuais em que se ensina aos meninos a ser mais agressivos do que as meninas. Consideráveis pesquisas têm sido feitas sobre o conceito eriksoniano de identidade de ego. Estudos revelam que adolescentes que desenvolveram uma identidade forte, positiva, enfrentaram de modo adaptativo as crises dos estágios anteriores de desenvolvimento. Adolescentes com uma identidade do ego fraca resolveram as crises de maneira não adaptativa (ver, por exemplo, Waterman, Buebel e Waterman, 1970). Essas e outras descobertas confirmam as previsões de Erikson. Algumas pesquisas, no entanto, sugerem que a crise de identidade pode ocorrer numa idade posterior à postulada por Erikson. Um estudo mostrou que a crise de busca de uma identidade de ego durante a adolescência, advinda de suas próprias experiências de vida, é o tema central da teoria do desenvolvimento da personalidade, que considera que esse processo ocupa a duração de vida da pessoa, formulada por Erik Erikson. Identidade começa no final da adolescência e que mais de 30% dos sujeitos ainda estavam buscando uma identidade aos vinte e quatro anos (Archer, 1982). Outras descobertas indicam que quem assume empregos de tempo integral depois do colégio adquire uma identidade de ego mais cedo do que os que vão para a universidade. Assim, o prosseguimento dos estudos pode retardar a resolução da crise de identidade (Adams e Fitch, 1982). Isso confIrma a noção de Erikson de crise de identidade, mas indica que sua estimativa da resolução aos dezoito anos pode estar equivocada. De modo geral, há consideráveis evidências para sustentar a noção de identidade do ego, mas não ocorre o mesmo com os estágios infantis do desenvolvimento ou com o estágio da idade adulta (McAdams, Ruetzel e Foley, 1986). Menos atenção tem sido dada à maturidade, o estágio final de desenvolvimento segundo Erikson,, e os críticos alegaram que ele tinha pouco a dizer sobre isso. Ele respondeu a essas críticas em 1986, escrevendo, aos oitenta e quatro anos, Vital Involvement ia Old Age (Envolvimento Vital na Velhice — Erikson Erikson e Kivnick, 1986). O livro mostra a própria vitalidade de Erikson em seus últimos anos, em que continuou a desenvolver e a aplicar sua teoria. A obra de Erikson tem tido influência tanto na psicanálise como na educação, na assistência social e no aconselhamento vocacional e de casais. O desenvolvimento do campo da psicologia desenvolvimental que abrange toda a duração de vida, e o atual interesse nos problemas do desenvolvimento da meia-idade e da velhice, são decorrências diretas do seu trabalho. Seus livros continuam a ter popularidade entre os profissionais e o público em geral, e ele foi capa das revistas Newsweek e The New York Times Magazine, incomum reconhecimento para um psicólogo. Comentários precisos: Descrevemos a diversidade e as divisões que têm caracterizado os desenvolvimentos da tradição psicanalítica durante a vida de Freud e depois de sua morte. Algumas posições contemporâneas têm pouca semelhança com as concepções freudianas e só podem ser consideradas psicanalíticas por se mostrarem distantes da tradição psicológica comportamentalista /experimental. Embora devam sua origem a Freud, por terem surgido a partir da oposição aos seus pontos de vista, elas compartilham com a psicanálise ortodoxa apenas um interesse amplo pela compreensão da personalidade humana. Allport, que tanto divergiu das concepções freudianas, poderia ser chamado mais apropriadamente de psicólogo humanista. As obras de Murray e Erikson têm uma semelhança mais clara com a de Freud, mas dela divergem em aspectos gerais e específicos. Há na tradição psicanalítica uma fragmentação consideravelmente maior do que no âmbito da posição comportamentalista. Apesar das mudanças introduzidas pelos neocomportamentalistas todos partilham a crença de John B. Watson segundo a qual o comportamento, em alguma forma, deve permanecer como foco de estudo. Em contrapartida, nem todos os seguidores de Freud concordam que o foco do seu estudo deva ser as forças inconscientes ou biológicas, ou que o comportamento humano é motivado pelo sexo e pela agressão. Hoje, há muito mais subescolas de psicanálise do que de comportamentalismo. Essa maior pluralidade de pontos de vista pode ser considerada quer um sinal de força e vitalidade, quer de fraqueza e fracasso, mas no momento esses desenvolvimentos são demasiado recentes para se julgar. Eles ainda constituem a história em formação. Uma Observação da nossa longa discussão As Escolas de Pensamento em Perspectiva: Ao longo deste debate, temos descrito a maneira pela qual as principais escolas de pensamento psicológicas surgiram, prosperaram por algum tempo e (com excepção da psicanálise) passaram a fazer parte da corrente principal da psicologia americana contemporânea — ou contribuíram para ela. Vimos que cada movimento se fortaleceu e se vitalizou mediante sua oposição à escola precedente. Quando já não havia necessidade de protesto, quando a nova escola tinha conquistado sua oposição, essa escola cessava de ser um movimento e se tornava a posição estabelecida — ao menos por algum tempo. Cada escola de pensamento foi bem-sucedida à sua própria maneira. Cada urna delas deu substanciais contribuições à evolução da psicologia. Isso se aplica até ao estruturalismo, apesar de ele ter deixado poucas marcas directas na cena psicológica moderna. Já há décadas não existem estruturalistas da variedade titcheneriana na psicologia. Mas o estruturalismo foi um sucesso enorme por ter ajudado o empreendimento iniciado por Wilhelm Wundt: o estabelecimento de uma ciância psicológica independente, finalmente livre da filosofia. O facto de o estruturalismo não ter conseguido permanecer como a posição dominante em psicologia por mais do que um curto período não lhe retira sua realização revolucionária de primeira escola de pensamento de uma nova ciência e de fonte de oposição para as escolas que a ele se seguiram. Consideremos o sucesso do funcionalismo, que também não durou como escola de pensamento distinta. Enquanto atitude ou ponto de vista, tudo o que ele pretendia ser, o funcionalismo permeia o pensamento psicológico americano contemporâneo. Na medida em que a psicologia americana é hoje tanto profissão como ciência e está aplicando activamente suas descobertas a quase todos os aspectos da vida, a ideia funcional, utilitária, mudou a natureza da psicologia. Que dizer da psicologia da Gestalt? Também ela, em escala mais modesta, realizou sua missão. Sua oposição ao elementarismo, seu apoio a uma abordagem molar e seu continuo interesse pela consciência influenciaram psicólogos das áreas de psicologia clínica, aprendizagem, percepção, psicologia social e pensamento. Ao contrário do estruturalismo e do funcionalismo, a psicologia da Gestalt conserva muitas das características de uma escola de pensamento distinta; há hoje psicólogos que definem sua pesquisa e identidade profissional como gestaltista. Embora essa escola não tenha transformado a psicologia da maneira que os seus fundadores esperavam, ela teve um impacto considerável e deve por isso ser considerada um sucesso. Por mais notáveis que sejam as realizações do estruturalismo, do funcionalismo e da psicologia da Gestalt, cumpre colocá-las em segundo plano diante das influências fenomenais do comportamentalismo e da psicanálise. São pronunciados os efeitos desses movimentos, que mantiveram suas identidades como escolas de pensamento ímpares. Durante décadas, em especial nos Estados Unidos, os psicólogos vêm declarando pertencer à tradição comportamentalista ou psicanalítica. Embora as relações entre essas duas escolas tenham melhorado ao longo dos anos, elas permanecem, de modo geral, forças distintas no campo da psicologia. Discutimos o modo pelo qual tanto o comportamentalismo como a psicanálise se partiram em várias posições desde os dias dos seus fundadores, John B. Watson e Sigmund Freud. Não há hoje uma forma de comportarnentalismo ou de psicanálise aceita por todos os membros de qualquer dessas escolas (embora, por muitos anos, B. F. Skinner tenha tido proeminência no comportamentalismo). A emergência de subescolas dividiu ambos os sistemas em facções competidoras, cada qual com seu próprio mapa do caminho correcto. Apesar da diversidade interna das escolas, os comportamentalistas e os psicanalistas permanecem firmemente uns contra os outros em muitas das suas defmições e abordagens de problemas psicológicos. Os comportamentalistas skinnerianos, por exemplo, ainda têm mais em comum com os sociocomportamentalistas seguidores de Bandura ou Rotter do que com os seguidores da psicanálise junguiana ou eriksoniana. A vitalidade dessas duas importantes escolas de pensamento se evidencia em sua continua evolução. Vimos que a psicologia de Skinner não é o último estágio no desenvolvimento do comportamentalismo, do mesmo modo como a psicologia de Adler ou de Horney não é o estágio frnal da psicanálise. Neste capítulo examinaremos vários desenvolvimentos que caracterizam a psicologia americana na última metade do século XX. Entre eles, há questões práticas que promovem o avanço da psicologia como profissão, por exemplo, o papel das mulheres e das minorias, que trataremos nos termos de alguns dos factores contextuais assinalados anteriomente. Outros desenvolvimentos são teóricos e fazem progredir a evolução científica da psicologia. No tocante a isso, discutiremos dois movimentos — a psicologia humanista e a psicologia cognitiva — que ajudaram a dar nova forma ao campo ao retornarem ao estudo da consciência. As Mulheres na História da Psicologia. Mais da metade dos que recebem doutorados em psicologia todos os anos são mulheres, mas a história da psicologia tem sido claramente dominada pelos homens. Esse desequilíbrio de gêneros não é, naturalmente, peculiar à psicologia. Se considerarmos a história de qualquer disciplina, seja nas outras ciências, nas humanidades, na música, nas artes ou na literatura, encontramos a mesma preponderância de nomes masculinos nas páginas dos seus relatos escritos. Neste texto, as obras de mulheres notáveis como Margaret Floy Washburn, Mar)’ Whiton Calkins, Mary Cover Jones, Biuma Zeigarnik, Anua Freud e Karen Horney foram citadas, mas são uma minoria em comparação com o espaço necessariamente dedicado às contribuições dos homens. Há razões históricas pelas quais as contribuições das mulheres na psicologia permaneceram não reconhecidas, razões que se relacionam com algumas das forças contextuais mencionadas . Uma delas é que, durante muitos anos, as mulheres enfrentaram restrições, discriminações e desigualdades na pósgraduação, tanto nos Estados Unidos como na Europa. Recorde-se o exemplo de Washburn, que, por ser mulher, não pôde ser admitida em Colúmbia. Só em 1892 Yale, a Universidade de Chicago e algumas outras instituições aceitaram umas poucas mulheres em programas de pós-graduação. Assim, por quase duas décadas depois da fundação formal da psicologia como disciplina científica, as mulheres tinham dificuldades em se tornar psicólogas e ainda mais em dar contribuições ao campo. A explicação dada para essas restrições académicas, e que é outra forma de discriminação enfrentada pelas mulheres na época, era a crença social e cultural consagrada na superioridade intelectual dos homens. Mesmo que se dessem às mulheres oportunidades educacionais iguais às oferecidas aos homens,.prosseguia o argumento, suas deficiências intelectuais inatas as impediriam de aproveitá-las. Cientístas proeminentes do século XIX, incluindo Darwin e a maioria dos psicólogos da época (entre eles Hall, Thorndike, Cattell e Freud), aceitavam essa concepção. Mesmo hoje, essa crença não desapareceu por inteiro. Uma outra teoria sobre as mulheres sugeria que elas sofreriam danos físicos e emocionais se fossem expostas à educação superior. O. Stanley Hall, entre outros, afirmou que educar as mulheres poria em risco seu imperativo biológico da maternidade, perturbando o ciclo menstrual e enfraquecendo o impulso maternal, levando ao “suicídio da raça”. Se tivessem de ser educadas, instou Hall, “elas deveriam ser educadas para a maternidade” (Diehl, 1986, p. 872). Em 1873, um ex-professor da escola médica de Harvard publicou um livro catalogando “com detalhes grotescos os efeitos deletérios da educação superior sobre o bem-estar físico das mulheres”, incluindo “cérebros monstruosos e corpos débeis; cerebração anormalmente activa e digestão anormalmente fraca; pensamento disperso e entranhas constipadas” (Scarborough e Furumoto, 1987, p. 4). O livro ficou tão popular que teve dezessete edições nos treze anos seguintes. Outra razão por que as mulheres na história da psicologia têm sido insuficientemente reconhecidas é a natureza das tarefas a que quase todas têm ficado restritas. Em muitos campos, e não só na psicologia, tem sido difícil para as mulheres conseguir cargos nos corpos docentes de universidades, exceto em escolas de mulheres. Mesmo quando eram contratadas, as mulheres eram discriminadas em termos de promoção e de vantagens, tendiam a ser concentradas nos níveis docentes mais baixos e recebiam um salário menor do que os homens em posições semelhantes. Por serem, na prática, afastadas de muitos cargos universitários, as mulheres foram obrigadas a procurar emprego nos campos aplicados, particularmente em profissões de ajuda como psicologiá clínica e aconselhamento, orientação infantil e psicologia escolar. Mesmo tendo feito contribuições significativas nessas áreas — sendo pioneiras, por exemplo, no desenvolvimento e no uso de testes psicológicos —, as mulheres estavam em desvantagem profissional por trabalharem em psicologia aplicada. Empregos em ambientes não académicos não proporcionam o tempo, o apoio financeiro e a assistência de alunos de pósgraduação necessários para a realização de pesquisas e a redação de artigos e livros, os veículos primários da visibilidade profissional. Em ambientes aplicados, as contribuições dadas raramente se tomam conhecidas fora dos limites da instituição em que se trabalha. A tremenda expansão da psicologia aplicada nos Estados Unidos no século XX ofereceu às mulheres oportunidades de emprego que, do contrário, elas não teriam tido. Mas também significou mantê-las fora da corrente principal da psicologia académica, onde as teorias, programas de pesquisa e escolas de pensamento — os temas que defmem a história da psicologia — estavam sendo desenvolvidos. Muitos psicólogos acadêmicos viam de modo negativo o trabalho aplicado, considerando-o uma espécie de trabalho doméstico menor. E, por algum tempo, algumas das áreas aplicadas da psicologia eram consideradas, depreciativamente, “trabalho de mulher”. Além disso, como a maioria das histórias da psicologia são escritas por professores universitários, o campo da psicologia aplicada é miniinizado ou desprezado e, com ele, as contribuições das muitas mulheres que se dedicam a essas áreas. As mulheres que conseguiam cargos universitários, realizavam pesquisas e publicavam suas descobertas e ideias tinham ainda outro obstáculo que as privava de reconhecimento como psicólogas. O método aceito de documentação para apresentação de nomes de autores em publicações profissionais (apenas o sobrenome e as iniciais) torna impossível a determinação pelos leitores do sexo do autor. Logo, a consciência das contribuições das mulheres como grupo termina por ser menor do que o seria se se usassem os nomes nas citações. Por outro lado, “é provável que nunca venhamos a saber a quantidade de trabalhos feitos por mulheres mas creditados a homens; quantas notas de pé de página de agradecimento não deveriam se tornar o reconhecimento de co-autorias, quantas vezes a coautoria não é na verdade autoria ou quantas vezes era o co-autor masculino que deveria ter merecido a nota de pé de página” (Bernstein e Russo, 1974, p. 131). Os historiadores de psicologia estão começando a tratar desses problemas, proporcionan do maior reconhecimento às contribuições das mulheres. A literatura profissional sobre o seu papel na psicologia tem crescido com rapidez a partir dos anos 70 ( Furumoto, 1989; Lemer, 1979; O’Connell e Russo, 1983, 1988; e Scarborough e Furumoto, 1987). Essa consciência também levou a APA a estabelecer a Força Tarefa Sobre a Condição das Mulheres, em 1970, e o Comitê Sobre Mulheres no Campo da Psicologia, em 1973. O propósito do comité é assegurar que “as mulheres consigam a igualdade como membros da comunidade psicológica, a fim de que todos os recursos humanos sejam utilizados” (Women in the Arnerican Psychologicsi Association, 1986, p. 1). Também em 1973 foi estabelecida na APA a Divisão da Psicologia das Mulheres para promover o estudo das mulheres e a avaliação do trabalho de mulheres psicólogas. Uma das prioridades é aumentar a participação na psicologia de mulheres de minorias étnicas e desenvolver uma abordagem multicultural dos aspectos psicológicos e sociais da vida das mulheres. No começo do século XX, cerca de vinte mulheres tinham conseguido graus de doutoras em psicologia. Na edição de 1906 de Anierican Men of Science, de Cattell, 12% dos psicólogos eram mulheres, número alto se considerarmos as barreiras impostas à sua educação pós- graduada. Essas primeiras psicólogas foram activamente encorajadas a se filiar à APA. Na segunda reunião da organização, em 1893, duas mulheres ingressaram na instituição; doze anos mais tarde, Mary Whiton Calkins tomou-se a primeira presidente da APA. A Associação Médica Americana só permitiu o ingresso de médicas em 1915, e as advogadas estiveram banidas da associação profissional até 1918 (Furumoto, 1987). Por volta de 1917, as mulheres constituíam 13% dos membros da APA, proporção superior à de qualquer outra sociedade cientifica da época. O número de mulheres eleitas para a presidência da APA também aumentou recentemente. Apenas duas mulheres se tornaram presidente nos setenta e oito anos entre 1892 e 1970; mas, a partir de 1970, cinco já o foram. Nos anos 70 e 80, as mulheres obtiveram mais ou menos a metade dos doutorados concedidos no campo. Tem havido um marcado crescimento no número de pesquisadoras e autoras de livros e artigos de revistas profissionais, mesmo em áreas tradicionalinente dominadas pelos homens, como a psicologia industrial/organizacional. Um crescente número de mulheres tem ocupado cargos importantes em organizações profissionais e recebido prestigiosos prémios e medalhas. Embora as mulheres já não sejam invisíveis na psicologia, a discriminação sexual continua no ensino universitário. A porcentagem de mulheres que compõem o corpo docente dos departamentos de psicologia é hoje, passados quarenta anos, praticamente a mesma de 1944: 26%. As mulheres continuam principalmente nos níveis universitários mais baixos e menos vantajosos e a receber menos do que os homens com experiência comparável. Leta Stetter Hollingworth (1886-1939) e a Psicologia da Mulheres Além de progredirem no interior da psicologia como profissão e ciência, as psicólogas têm contribuído para o estudo da psicologia das mulheres. Uma pioneira nessa área é Leta Stetter Hollingworth, doutorada em Colúmbia no ano de 1916. Na época, ela já publicara obras significativas sobre a psicologia das mulheres. Ela fez amplas pesquisas empíricas sobre a hipótese da variabilidade, a ideia de que, em termos de capacidades fisicas e intelectuais, as mulheres constituem um grupo mais homogêneo do que os homens. Como se consideravam os homens um grupo que exibia maior variação, havendo portanto maior probabilidade de que alguns deles exibissem capacidades acima da média e superiores, eles obviamente se beneficiariam de oportunidades educacionais e profissionais diversificadas. As mulheres, consideradas mais semelhantes entre si e mais aglomeradas no nível médio de capacidade, tinham pouca necessidade de ser educadas para qualquer coisa além das tarefas domésticas. Os dados de Hollingworth refutaram a hipótese da variabilidade e outras noções de inferioridade feminina. Ela descobriu que o ciclo menstrual não tinha relação com decréscimos de desempenho em termos de habilidades perceptivas e motoras ou de aptidões intelectuais. Seu trabalho contestou a ideia de que as mulheres só poderiam encontrar satisfação na maternidade e de que o seu desejo de se realizar em outros campos era um tanto anormal e não saudável. Ela sugeriu que eram antes as atitudes sociais do que os factores biológicos que impediam as mulheres de se tornar membros plenamente contribuintes da sociedade (Benjamm, 1975; Shields, 1975). Assim, o trabalho de Hollingworth, que apresentou essas ideias no período entre 1913 e os anos 30, deve por força ser reconhecido precursor do pensamento contemponineo sobre a psicologia das mulheres. Os Afro-Americanos na História da Psicologia Assinalamos que os afro-americanos também tinham sido amplamente excluídos da psicologia por muitos anos. Num ano tão recente quanto 1940, apenas quatro faculdades para negros dos Estados Unidos ofereciam cursos de graduação em psicologia. Quando tinham permissão para freqüentar universidades predominantemente brancas, os negros enfrentavam várias formas de discriminação. Por exemplo, nos anos 30 e 40, os estudantes negros não podiam viver nos campos de muitas universidades. Durante muitos anos, a universidade que se destacou no oferecimento de instrução em psicologia para alunos afro-americanos foi a Universidade Howard, de Washington, D.C. Entre 1919 e 1938, vinte alunos negros de pós-graduação a frequentaram. Entre 1920 e 1950, só trinta e dois negros conseguiram o doutorado em psicologia. E, entre 1920 e 1966, os dez mais respeitados departamentos de psicologia dos Estados Unidos só concederam oito doutorados a negros, de um total de mais de 3.700 (Guthrie, 1976; Russo e Denmark, 1987). Já observamos que G. Stanley Hall, na Universidade Clark, foi um dos poucos psicólogos a encorajar a matrícula de negros em seus programas de pós-graduação. Uns poucos afro-americanos foram para a Alemanha fazer estudos pós-graduados; Gil bert Haven Jones, por exemplo, doutorou-se na Universidade de Gôttingen em 1901. Os negros americanos não encontravam nas escolas europeias o mesmo tipo de preconceito existente em casa, mas poucos tinham recursos financeiros para estudar no exterior. As pesquisas de Leta Stetter Hollingworth refutaram amplamente as noções de inferioridade feminina e sugeriram que as mulheres sofriam uma maior restrição de factores sociais. Doutorar-se era apenas o primeiro obstáculo no caminho de uma carreira de psicólogo. Encontrar um emprego costumava apresentar a mesma dificuldade. Virtualmente nenhuma universidade branca empregaria um professor negro, e a maioria das organizações que contratavam psicólogos aplicados — unia importante fonte de empregos para as psicólogas — estava fechada aos negros. Isso deixava as faculdades negras como a principal fonte de emprego, mas as condições nelas raramente forneciam oportunidades de pesquisas académicas que levassem à visibilidade e ao reconhecimento profissionais. Em 1936, um professor escreveu acerca da luta do professor universitário negro: A falta de dinheiro, o excesso de trabalho e outros factores desagradáveis tornam praticamente impossível que ele faça algo notável no campo da pesquisa acadêmica pura. Ele não pode comprar livros em larga escala e não tem acesso a eles nas bibliotecas das escolas, porque, nas escolas de negros, na verdade não há bibliotecas adequadas. É provável que a maior deficiência de todas seja a carência de atmosfera académica ao seu redor. Não há incentivo e, naturalmente, não há dinheiro para pesquisas na maioria das escolas (Guthrie, 1976, p. 123). A situação dos psicólogos afro-americanos melhorou recentemente tanto em termos de graus de pós-graduação como de oportunidades de emprego. Em 1970, Kenneth B. Clark tomou-se o primeiro psicólogo negro a ser eleito presidente da APA. Clark bacharelou-se e fez o mestrado em psicologia na Universidade Howard, tendo feito o doutorado ém Cohimbia, graduando-se em 1940. Sua carreira académica e de pesquisa é notável. Ele trabalhou primeiro no Hampton Institute e, mais tarde, com o City College de Nova York. Suas pesquisas sobre os efeitos da segregação racial foram citadas pela Suprema Corte dos Estados Unidos em seu famoso pronunciamento de 1954 sobre os direitos civis, que baniu a segregação racial nas escolas públicas. Clark publicou muitos livros e artigos importantes e recebeu honras profissionais por suas contribuições à psicologia e à sociedade. A Psicologia Humanista ou a terceira força No início dos anos 60, há mais de três décadas, desenvolveu-se na psicologia americana um movimento conhecido como psicologia humanista ou a terceira força. Ele não pretendia ser a revisão nem a adaptação de nenhuma escola de pensamento corrente, ao contrário do que ocorria com algumas posições neofreudianas e neocomportamentais. Em vez disso, como o termo terceira força o indica, a psicologia humanista queria substituir o comportamentalismo e a psicanálise, as duas principais forças da psicologia. Os temas básicos da psicologia humanista, como os de todos os movimentos, tinham sido reconhecidos e defendidos anteriormente. Os pontos essenciais eram: (1) uma ênfase na experiência consciente, (2) uma crença na integralidade da natureza e da conduta do ser humano, (3) a concentração no livre-arbítrio, na espontaneidade e no poder de criação do indivíduo, e (4) o estudo de tudo o que tenha relevância para a condição humana. Antecipações dessas ideias podem ser encontradas nas obras dos primeiros psicólogos. Consideremos o caso de Franz Brentano oponente de Wundt e precursor dos gestaltistas. Brentano criticou o uso da abordagem mecanicista e reducionista da ciência natural para a psicologia e favoreceu o estudo da consciência como qualidade molar activa, e não como conteúdo molecular passivo. Oswald Külpe demonstrou que nem toda experiência consciente podia ser reduzida à forma elementar ou ser explicada em termos de respostas a estímulos. William James se opusera à abordagem mecanicista e conclamara à concentração na consciência e no indivíduo inteiro. Os gestaltistas acreditavam que a psicologia deveria abordar a consciência a partir da perspectiva da totalidade. Diante da primazia do comportamentalismo, eles continuaram a insistir que a experiência consciente era uma área de estudo legítima e proveitosa para a psicologia. Alguns psicólogos afirmaram que a semelhança entre a psicologia da Gestalt e a psicologia humanista é tão forte que não há razão para dar ao movimento mais novo nenhum outro nome. Eles acreditam que o rótulo Gestalt é adequado para descrever os temas compreendidos pela psicologia humanista (Wertheimer, 1978). Há vários antecedentes da posição humanista na psicanálise. Adier, Horney, Erikson e Allport se opuseram à ideia freudiana de que a personalidade é determinada por forças biológicas. O trabalho de Kenneth B. Clark sobre os efeitos da segregação racial foi citado pela Suprema Corte dos Estados Unidos numa decisão de 1954 que pôs fim à segregação racial nas escolas públicas. biológicas e eventos passados. Também, discordaram da noção de Freud de que as pessoas são governadas por forças inconscientes. Esses dissidentes da psicanálise ortodoxa acreditavam que as pessoas são primordialmente seres conscientes que possuem espontaneidade e livre- arbítrio e são pelo menos tão influenciadas pelo presente e pelo futuro quanto pelo passado. Eles creditavam à personalidade humana o poder criativo de moldar a si mesma. Com todos os movimentos da psicologia moderna, faz sentir sua influência ao transformar antecedentes e tendências num ponto de vista efectivo. A psicologia humanista parecia reflectir a insatisfação e o desgosto veiculado pelos jovens dos anos 60 contra os aspectos mecanicistas e materialistas da cultura ocidental contemporânea. Dissemos que todo novo movimento usa seu oponente mais antigo, a posição estabelecida, como base a partir da qual impele a si mesmo para ganhar impulso. Em termos práticos, o novo movimento precisa afirmar articuladamente e em voz alta as fraquezas da visão dominante vigente. A psicologia humanista tinha dois desses alvos: o comportamentalismo e a psicanálise. Os psicólogos humanistas acreditavam que o comportamentalismo era uma abordagem estreita, artificial e relativamente estéril da natureza humana. A ênfase no comportamento manifesto era, diziam eles, desumanizante, reduzindo-nos a animais ou máquinas. Eles rejeitavam a concepção de seres humanos funcionando de modo determinista em resposta a experiências infantis ou a eventos-estímulo do ambiente. Além disso, o comportamentalismo não chegara a um acordo com características propriamente humanas, com as qualidades e capacidades conscientes subjetivas que distinguem as pessoas dos animais de laboratório. Uma psicologia baseada em respostas condicionadas discretas faz da pessoa um organismo mecanizado que apenas responde aos estímulos apresentados. Para os psicólogos humanistas, os seres humanos são muito mais do que ratos brancos, robôs ou computadores, não podendo ser objetificados, quantificados e reduzidos a unidades de estímulo-resposta. Em outras palavras, os indivíduos não são organismos vazios. Os psicólogos humanistas também se opunham às tendências deterministas encontradas na abordagem freudiana da psicologia, bem como à sua minimização do papel da consciência. Os freudianos eram criticados por só estudarem pessoas perturbadas — neuróticos e psicóticos. Se os psicólogos tivessem como foco exclusivo a doença mental, como poderiam aprender alguma coisa sobre a saúde mental, sobre qualidades e características humanas positivas? Desconsiderando atributos como o júbilo, a satisfação, o contentamento, o êxtase, a gentileza e a generosidade, e concentrando-se no lado mais sombrio da personalidade humana, a psicologia ignorava todas essas forças e virtudes distintamente humanas. Assim, foi em resposta à forma limitadora de psicologia promovida pelo comportamentalismo e pela psicanálise que os psicólogos humanistas apresentaram sua alternativa como a terceira força em psicologia. Todos os aspectos da experiência peculiarmente humana são levados em consideração pela psicologia humanista: o amor, o ódio, o medo, a esperança, a felicidade, o bom humor, a afeição, a responsabilidade e o sentido da vida. Esses aspectos da existência humana não são tratados por muitos manuais modernos de psicologia por não serem suscetíveis de definição operacional, quantificação ou manipulação de laboratório. Os críticos da psicologia humanista asseveram que o seu escopo parece vago, mas isso é da natureza do movimento. Ê mais fácil descrever aquilo a que se opõem os psicólogos humanistas do que aquilo que defendem ou como esperam alcançar suas metas. O termo psicologia humanista veio a ter muitos sentidos, e é “improvável que uma definição explícita dele que venha a ser formulada satisfaça mesmo uma pequena parcela das pessoas que denominam a si mesmas ‘psicólogos humanistas’ (Wertheiiner, 1978, p. 743). Como a psicologia humanista, ao contrário da primeira psicanálise, se concentrava mais em pessoas psicologicamente saudáveis do que em pessoas emocionalmente perturbadas, sua abordagem terapêutica era diferente. Chamadas terapias do crescimento, parte do movimento do potencial humano, terapias humanistas proliferaram nos anos 60 e 70, quando milhões de pessoas passaram a frequentar grupos de encontro e programas de treinamento da sensibilidade em escolas, empresas, igrejas, presídios e clínicas privadas. A popularidade desses programas vem desde então declinando dramaticarnente. Derivadas em parte do trabalho de Knrt Lewin , terapias do crescimento eram usadas com pessoas de saúde mental normal ou média a fim de elevar seus níveis de consciência, ajudá-las a se relacionar melhor consigo mesmas e com os outros e libertar potenciais ocultos de criatividade e autodesenvolvimento. Em outras palavras, os programas pretendiam incrementar a saúde psicológica e a auto-realização. Infelizmente, o movimento do potencial humano atraiu mais charlatães, praticantes bem intencionados mas não treinados e gurus e messias autocriados, que faziam mais mal do que bem, do que merecia. Estudos sobre os efeitos ulteriores da participação em grupos de encontro revelaram um aumento de taxas de baixas psicológicas de menos de 1% para do que de fatores biológicos. quase 50% (Hartley, Robach e Abramowitz, 1976). Muitas pessoas acreditam que a psicologia humanista se resumia aos grupos de encontro, mas o movimento é muito mais amplo. Trata-se de um sério estudo da natureza e da conduta humana, e é talvez melhor representado pelas obras de Abraham Maslow e Carll Rogers. Abraham Mas!ow (1908-1970) Abraham Maslow é considerado o pai espiritual da psicologia humanista, e é provável que tenha feito mais do que ninguém para difundir o movimento e conferir-lhe um certo grau de respeitabilidade académica. Maslow desejava compreender as mais elevadas realizações que os seres humanos são capazes de alcançar, razão por que estudou uma pequena amostra das pessoas mais saudáveis psicologicamente que pôde encontrar a fim de determinar de que maneira diferiam das pessoas cuja saúde mental não passava da média. A partir desse estudo, ele desenvolveu uma teoria da personalidade que se concentra na motivação para crescer, para se desenvolver e realizar o eu a fim de concretizar de modo pleno nossas capacidades e potencialidades humanas. Nascido no Brooklyn, Nova York, Maslow teve uma infância infeliz. Seu pai era um alcoólatra e pervertido distante que desaparecia por longos períodos de tempo. Sua mãe era intensamente supersticiosa, e punia o jovem Maslow pelo mínimo comportamento incorrecto, rejeitando-o abertamente em favor dos seus dois filhos mais novos. Certa feita, ela matou dois gatos que ele levara para casa batendo-lhes a cabeça contra a parede na frente dele. Ele nunca perdoou sua atitude e seu comportamento para com ele e, quando ela morreu, recusou-se a ir ao funeral. Essas experiências tiveram sobre Maslow um efeito que durou toda a vida. “Todo o impulso da minha filosofia de vida”, escreveu ele, “e todas as minhas pesquisas e teorias... têm suas raízes no ódio e na revolta contra tudo o que ela representava” (Hoffman, 1988, p. 9). Maslow tinha um sentimento de inferioridade desde a infância, por causa do seu físico esquelético e do seu nariz grande, e caracterizou sua adolescência como um gigantesco complexo de inferioridade, que ele tentou compensar desenvolvendo habilidades atléticas. Assim, o homem que mais tarde se interessou pela obra de Alfred Adier era ele mesmo um exemplo da teoria adleriana dos sentimentos de inferioridade e da compensação. Como não conseguisse alcançar aceitação e estima no campo atlético, Maslow se voltou para os livros e para o estudo. Nessa arena, sua actuação sempre foi excelente. Ele se inscreveu na Universidade Cornell, onde seu primeiro curso de psicologia foi, segundo ele, “terrível e exangue, nada tendo que ver com as pessoas; por isso, dei de ombros e o abandonei” (Hoffman, 1988, p. 26). Ironicamente, o professor de Maslow naquele curso era E. B. Titchener, que ainda (em 1927) ensinava apenas sua própria fomia estreita de psicologia estrutural, ignorando as outras escolas de pensamento. Maslow transferiu-se para a Universidade de Wisconsin e doutorou-se em 1934. No início, Maslow era um ardoso comportamentalista, convencido de que a abordagem mecanicista da ciência natural fornecia respostas para todos os problemas do mundo. Então, uma série de experiências pessoais, que foram do nascimento do seu primeiro filho à eclosão da Segunda Guerra, passando pela exposição a outras abordagens da natureza humana (tais como a filosofia, a psicologia da Gestalt e a psicanálise freudiana), o persuadiram de que o comportamentalismo era demasiado limitado para ter relevância para questões humanas duradouras. Maslow também sofreu a influência de alguns psicólogos europeus que tinham fugido da Alemanha nazista e se instalado nos Estados Unidos — Alfred Adier, Karen Horney, Kurt Koffka e Max Wertheimer. Seus sentimentos de assombro diante de Wertheimer e da antropóloga americana Ruth Benedict o levaram ao seu primeiro estudo das pessoas auto-realizadoras psicologicamente saudáveis. Wertheimer e Benedict foram os modelos de Maslow para a melhor expressão da natureza humana. Trabalhando principalmente na Universidade Brandeis, em Waltham, Massachusetts, entre 1951 e 1969, Maslow desenvolveu e aprimorou sua teoria numa série de livros provocadores. Ele apoiou o movimento dos grupos de sensibilidade e veio a ser um dos mais bem conhecidos psicólogos dos anos 60. Em 1967, foi eleito presidente da APA. Segundo a perspectiva de Maslow, cada pessoa traz em si uma tendência inata para tomarse auto-realizadora (Maslow, 1970). Esse nível mais alto da existência humana envolve o desenvolvimento e o uso supremos de todas as nossas qualidades e capacidades, a realização de todo o nosso potencial. Para tomar-se auto-realizadora, a pessoa precisa satisfazer as suas necessidades primarias. Abraham Maslow, o pai espiritual da psicologia humanísta, acentuava a capacidade de autorealização de cada pessoa. necessidades que estão na escala mais baixa da hierarquia de necessidades proposta por Maslow. Essas necessidades são inatas, e cada uma delas tem de ser satisfeita antes que a próxima necessidade da hierarquia surja para nos motivar. As necessidades, na ordem em que têm de ser atendidas, são: (1) as necessidades fisiológicas de comida, água, ar, sono e sexo; (2) as necessidades de garantia: segurança, estabilidade, ordem, proteção e libertação do medo e da ansiedade; (3) as necessidades de pertinência e de amor; (4) as necessidades de estima dos outros e de si mesmo; e (5) a necessidade de auto-realização. O maior volume das pesquisas de Maslow concentrou-se nas características de pessoas que atenderam à necessidade de auto-realização e são por isso consideradas psicologicamente saudáveis. Maslow disse que elas não chegam a 1% da população. Essas pessoas são livres de neuroses e psicoses e quase sempre têm da meia-idade em diante. Elas têm em comum as seguintes características: uma percepção objetiva da realidade; a plena aceitação de sua própria natureza; compromisso e dedicação a algum tipo de trabalho; simplicidade e naturalidade em seu comportamento; necessidade de autonomia, privacidade e independência; experiências místicas ou culminantes (momentos de êxtase, maravilhamento, assombro e deleite intensos); empatia com toda a humanidade e afeição por ela; resistência ao conformismo; estrutura de caráter democrática; atitude de criatividade; e um alto grau de interesse social (um conceito tomado de Alfred Adler). Nessa descrição, Maslow apresentou uma imagem otimista e lisonjeira da natureza humana, uma concepção de saúde psicológica e de realização que pode ser considerada um bem­vindo antídoto para os aspectos doentios, preconceituosos e hostís que podemos encontrar em nossa vida cotidiana. Muitas pessoas consideram tranquilizador acreditar que ao menos alguns de nós são capazes de alcançar um estado próximo da perfeição. O método de pesquisa e os dados de Maslow têm sido criticados a partir da alegação de que sua amostra de cerca de vinte pessoas é demasiado pequena para permitir generalizações. Além disso, seus sujeitos foram escolhidos segundo seus próprios critérios subjetivos de saúde psicológica, e os seus termos são definidos de maneira ambígua e inconsistente. Maslow admitiu que seus estudos não preenchiam os requisitos da pesquisa científica, mas retorquiu que não há outra maneira de estudar a auto-realização. Ele disse que seu programa de pesquisa consistia em estudos pilotos, e permaneceu convencido de que as suas conclusões um dia seriam confirmadas. A teoria da auto-realização tem apenas um limitado apoio laboratorial empírico; a maioria das pesquisas não conseguiu sustentá-la. Ela foi aplicada nos negócios e na indústria, onde muitos executivos acreditam que a necessidade de auto-realização é uma útil força motivadora e uma fonte potencial de satisfação no trabalho. Apesar de sua popularidade entre os lideres de negócios, a teoria tem um baixo grau de validade científica e uma aplicabilidade apenas limitada ao mundo do trabalho. Ela tem sido aplicada em outras áreas, incluindo a psicoterapia, a educação e a medicina. Carl Rogers (1902-1987) Carl Rogers é conhecido por uma abordagem popular de psicoterapia denominada terapia centrada na pessoa ou terapia centrada no cliente. Com base em dados derivados de sua terapia, Rogers desenvolveu uma teoria da personalidade que se concentra numa única motivação avassaladora, semelhante ao conceito de auto-realização de Maslow. Rogers propôs que cada pessoa possui uma tendência inata para actualizar as capacidades e potenciais do eu. Ao contrário de Maslow, no entanto, as visões de Rogers não foram formuladas a partir do estudo de pessoas saudáveis, mas advieram do tratamento de indivíduos emocionalmente perturbados através da terapia centrada na pessoa. O nome de sua terapia sugere algo da sua concepção da personalidade humana. Atribuindo a responsabilidade da mudança à pessoa ou cliente, e não ao terapeuta, como é o caso na psicanálise ortodoxa, Rogers supôs que as pessoas podem alterar consciente e racionalmente seus pensamentos e comportamentos indesejáveis, tornando-os desejáveis. Ele não acreditava que as pessoas sejam controladas por forças inconscientes ou por experiências da infância. A personalidade é moldada pelo presente e pela maneira como o percebemos conscientemente. A ideia de Rogers de que a personalidade pode ser compreendida apenas em termos das nossas experiências subjectivas pode reflectir um incidente de sua própria vida. Quando tinha vinte e dois anos e assistia na China a uma conferência de estudantes cristãos, começou a questionar as crenças religiosas fundamentalistas dos pais e a desenvolver uma filosofia de vida mais liberal (ver Rogers, 1967). Convenceu-se de que as pessoas devem confiar em seu próprio exame e na interpretação das suas próprias experiências. Ele também acreditava que as pessoas podem melhorar conscientemente a si mesmas. Esses conceitos se tornaram pilares de sua teoria da personalidade. No curso de uma carreira activa, Rogers desenvolveu sua teoria e sua abordagem psicoterapêutica, exprimindo ideias em inúmeros artigos e livros populares. Rogers sugeriu que a principal força motivadora da personalidade é a actualização do eu (Rogers, 1961). Embora esse impulso para a auto-atualização seja inato, ele pode ser ajudado ou prejudicado por experiências infantis e pela aprendizagem. Rogers enfatizou a importância da relação mãe-filho porque ela afecta o crescente sentido do eu da criança. Se a mãe satisfazer sua necessidade de amor, que Rogers denominava estima positiva, a criança tenderá a se tornar uma personalidade saudável. Se a mãe condicionar seu amor pelo filho ao comportamento adequado (o que é denominado estima positiva condicionaL), a criança vai internalizar a atitude da mãe e desenvolver condições de valor. Nessa situação, a criança só tem um sentido de valor próprio em certas condições, e evita os comportamentos que produzam desaprovação por parte da mãe. Como resultado, o eu da criança não consegue se desenvolver de modo pleno, já que está impedido de exprimir todos os seus aspectos. O requisito primordial para o desenvolvimento da saúde psicológica é a estima positiva incondicional na infância. Durante esse período, a mãe deve demonstrar seu amor e aceitação da criança, pouco importando o comportamento desta última. A criança que recebe essa estima positiva incondicional não desenvolve condições de valor e não terá de reprimir nenhuma parcela do eu emergente. Só assim pode a auto-atualização ser alcançada. A auto-atualização é o nível mais alto de saúde psicológica, e é alcançada por meio de um processo que Rogers denominou funcionamento pleno. Esse nível de desenvolvimento supremo na teoria de Rogers se assemelha em princípio com o estudo de auto-realização proposto por Maslow. As duas teorias diferem um tanto no tocante às características da pessoa psicologicamente saudável ou que alcançou seu pleno funcionamento. Para Rogers, as pessoas que alcançaram seu pleno funcionamento se caracterizam por uma abertura a toda experiência, uma tendência a viver plenamente cada momento, a capacidade de serem guiadas pelos próprios instintos, e não pela razão ou pelas opiniões dos outros, um sentido de liberdade de pensamento e de acção e um alto grau de criatividade. A abordagem de psicoterapia centrada na pessoa desenvolvida por Rogers tem tido um grande impacto sobre a psicologia e sobre o público em geral, sendo ao menos tão popular quanto a psicanálise freudiana. Sua teoria da personalidade tem sido bem recebida, particularmente sua ênfase na importância do eu. Têm sido feitas críticas à falta de especificidade no tocante ao potencial inato de auto-realização, bem como à ênfase nas experiências conscientes subjectivas com a exclusão de possíveis influências inconscientes. Tanto a teoria como a terapia geraram consideráveis pesquisas corroboratórias, sendo amplamente usadas em ambientes clínicos. Rogers influenciou o movimento do potencial humano, e sua obra é vista como uma importante contribuição da tendência de humanização da psicologia. Foi eleito presidente da APA em 1946 e recebeu dela os prêmios Distinguished Scientifïc Contribution Award e Distinguished Professional Contribution Award. A Influência da Psicologia Humanista A psicologia humanista exibiu no início do seu desenvolvimento as mesmas características que vimos em todos os outros novos movimentos da história da psicologia. Seus membros foram enfáticos em apontar as fraquezas das posições mais antigas, o comportamentalismo e a psicanálise, ambas bases sólidas a partir das quais tomar impulso. Muitos psicólogos humanistas eram zelosos e cheios de retidão, preparados para combater os demónios da situação estabelecida. A abordagem de psicoterapia centrada na pessoa desenvolvida por Carl Rogers atribui a responsabilidade da mudança ao cliente, e não ao terapeuta. O movimento foi formalizado com a fundação da publicação Joumal of Huinanistic Psychology em 1961, da Associação Americana de Psicologia Humanista em 1962, e da Divisão de Psicologia Humanista da APA em 1971. Assim, os traços distintivos de uma escola coesa de pensamento ficaram evidentes. Os psicólogos humanistas deram sua própria definição de psicologia, distinta da das outras duas forças do campo, e descreveram seu próprio objecto de estudo, seus próprios métodos e sua própria terminologia. E, sobretudo, possuíam aquilo que todas as outras escolas de pensamento se gabavam de ter em seus primeiros dias: uma apaixonada convicção de que o seu era o melhor caminho a ser seguido pela psicologia. Apesar desses simbolos e características de escola de pensamento, a psicologia humanista não se tomou de facto uma escola. Foi esse o julgamento dos próprios psicólogos humanistas numa reunião de 1985, quase três décadas depois do início do movimento. “A psicologia humanista foi uma grande experiência”, disse um deles, “mas é basicamente uma experiência fracassada, já que não há uma escola de pensamento humanista em psicologia, nem uma teoria que possa ser reconhecida como uma filosofia da ciência” (Cunningham, 1985, p. 18). Carll Rogers concordou “A psicologia humanista não tem tido um impacto significativo sobre a corrente principal da psicologia”, afirmou. “Somos percebidos como tendo relativamente pouca importância” (Cunningham, 1985, p. 16). Rogers disse aos que apoiavam a sua posição que, se quisessem uma prova de sua afirmação, bastava que examinassem qualquer manual introdutório de psicologia. Ali, encontrariam os mesmos tópicos que caracterizavam a psicologia vinte e cinco anos antes, com pouca menção à pessoa inteira. Uma análise dos manuais correntes na época revelou que Rogers tinha razão: menos de 1% do conteúdo dos livros se ocupava da psicologia humanista. Os poucos dados existentes falavam apenas da hierarquia de necessidades de Maslow e da terapia centrada na pessoa de Rogers (Churchill, 1988). Por que a psicologia humanista não se tomou parte da corrente principal do pensamento psicológico? Uma das razões é que a maioria dos psicólogos humanistas trabalha em clínicas particulares, e não em universidades. Ao contrário dos psicólogos acadêmicos, os humanistas não fizeram o mesmo número de pesquisas nem publicaram artigos ou treinaram novas gerações de alunos de pós-graduação para dar continuidade à sua tradição. Outra razão se relaciona com o momento do seu protesto. No seu auge, os anos 60 e inicio dos 70, os psicólogos humanistas atacavam posições que já não tinham tanta influência na psicologia. Tanto a psicanálise freudiana como o comportamentalismo skinneriano já tinham sido amortecidos e enfraquecidos pela divisão em seus quadros, e ambos já estavam começando a mudar na direcção indicada pelos psicólogos humanistas. Tal como os gestaltistas ao chegarem aos Estados Unidos, os psicólogos humanistas estavam se opondo, nos anos 60, a movimentos que já não dominavam em sua forma original. Embora a psicologia humanista não tenha transformado o campo como um todo, ele reforçou a ideia, contida na psicanálise, de que podemos consciente e livremente preferir moldar a nossa própria vida. Ela pode ter ajudado a fortalecer o crescente reconhecimento da consciência na psicologia académica, pois foi contemporânea do movimento cognitivo. Ela promoveu métodos terapêuticos que acentuam a auto-realização, a responsabilidade pessoal e a liberdade de escolha, bem como a consideração da pessoa no contexto da família, do trabalho e dos ambientes sociais. A psicologia humanista ajudou a expandir e ratificar mudanças já em curso, e, desse ponto de vista, pode-se considerar o movimento bem-sucedido. O Movimento Cognitivo na Psicologia “A psicologia”, escreveu John B. Watson em seu manifesto comportamentalista de 1913, “deve descartar toda referência à consciência”. Os psicólogos que seguiram os ditames de Watson eliminaram todas as referências à mente e aos processos conscientes e baniram os termos mentalistas. Foram banidos a vontade, o sentimento, a imagem, a mente e a consciência, que nunca eram mencionados excepto em tom sarcástico. Assim, B. F. Skinner pôde falar sobre um organismo vazio e construir um sistema influente de psicologia que nunca tentou investigar o que poderia estar acontecendo no interior. Durante décadas, os manuais introdutórios de psicologia não discutiam nenhuma concepção da mente humana. Tinha-se a impressão de que a psicologia ‘perdera a consciência” para sempre. De súbito, ou assim pareceu, embora a coisa viesse sendo construída há algum tempo, a psicologia começou a recuperar a consciência. As palavras antes proibidas estavam sendo ditas em voz alta em reuniões e conferências e aparecendo impressas em publicações profissionais. Em 1979, a American Psychologist publicou um artigo intitulado “O Comportamentalismo e a Mente: Uma Conclamação (Limitada) a Um Retorno à Introspecção” (Lieberman, 1979), invocando não apenas a mente mas também a técnica suspeita da introspecção. Alguns meses antes, a mesma revista publicara corajosa e abertamente um artigo com o simples título “A Consciência”. “Depois de décadas de deliberada negligência”, escrevia seu autor, “a consciência retoma ao escrutínio científico, com discussões do tópico surgindo em lugares absolutamente respeitáveis da literatura da psicologia” (Natsoulas, 1978, p. 906). O presidente da APA disse em seu discurso anual ao público reunido que a concepção de psicologia estava mudando e que essa alteração envolvia uma volta à consciência. Como resultado, a imagem psicológica da natureza humana se tornava “antes humana do que mecânica” (McKeachie, 1976, p. 831). Quando um membro da APA e uma prestigiosa revista discutem a consciência com tanto otimismo, é justo suspeitar de que um novo movimento, outra revolução, está a caminho. Seguiram-se revisões nos manuais introdutórios definindo a psicologia como a ciência do “comportamento e dos processos mentais”, em vez de apenas do comportamento, e como a ciência que “estuda sistematicamente e tenta explicar o comportamento observável e sua relação com os processos mentais não manifestos que ocorrem no interior do organismo” (Hilgard, Atkinson e Atkinson, 1975, p. 12; Kagan e Havemann, 1972, p. 9). Essas definições nos mostram o ponto até o qual a psicologia contemporânea ultrapassou os desejos e projetos de Watson e Skinner. Influências, Antecedentes sobre a Psicologia Cognitíva Como todos os movimentos em psicologia, a revolução cognitiva não eclodiu da noite para o dia. Muitas de suas características básicas tinham sido antecipadas pelo trabalho de outros. Com efeito, sugeriu-se que “a psicologia cognitiva é tanto a mais nova como a mais velha tendência na história do assunto” (Hearnshaw, 1987, p. 272). Isso significa que o interesse pela consciência existia nos primeiros dias da psicologia, antes mesmo de ela se tomar uma ciência formal. Os escritos de Platão e Aristóteles se ocupavam das faculdades e processos cognitivos, o mesmo ocorrendo com as teorias dos empiristas e associacionistas britânicos. Mesmo quando se tornou uma disciplina científica distinta, a psicologia continuou a ter a consciência como foco. Considerou-se Wilhelm Wundt precursor da psicologia cognitiva devido à sua ênfase no aspecto construtivo ou criativo da mente. O estruturalismo e o funcionalismo também lidavam com a consciência, concentrando-se, num caso em seus elementos e, no outro, em suas funções. O comportamentalismo produziu uma mudança fundamental, expulsando a consciência do campo por quase cinqüenta anos. O retomo à consciência, os primórdios da psicologia cognitiva, pode remontar aos anos 50, embora sinais do ressurgimento da mente já fossem perceptíveis desde a década de 30. Um dos primeiros proponentes foi E. R. Guthrie , que na maior parte de sua carreira foi um ardoroso comportamentalista. Perto do fmal da vida, contudo, ele veio a deplorar o modelo mecanicista e afirmou que nem sempre é possível reduzir os estímulos a termos físicos. Ele sugeriu que temos de descrever os estímulos de que a psicologia se ocupa em termos perceptivos ou cognitivos, para que tenham sentido para o organismo que responde. Os psicólogos não podem tratar do sentido apenas em termos comportamentalistas, por ser ele um processo mentalista ou consciente. O comportamentalismo intencional de E. C. Tohnan (que é uma abordagem molar) foi outro precursor do movimento cognitivo. Sua abordagem reconhecia a importância de variáveis cognitivas, tendo contribuído para o declínio da abordagem estímulo-resposta. Tolman propós a noção de mapas cognitivos, atribuiu propósito aos animais e destacou as variáveis intervenientes como uma maneira de definir operacionalmente estados interiores não suscetíveis de observação. Rudolf Carnap, um filósofo positivista, conclamou a um retomo à introspecção. Em 1956, Carnap observou que “a consciência que a pessoa tem do seu próprio estado de imaginação, de sentimento, etc., tem de ser reconhecida como uma espécie de observação, em princípio não distinta da observação externa, e, portanto como uma fonte legítima de conhecimento” (Koch, 1964, p 22). Mesmo P. W. Bridgman, o físico que deu à psicologia a noção de definições operacionais, tão compatível com o comportamentalismo, mais tarde renunciou a este último. Bridgman insistiu que se invocassem relatos introspectivos de sujeitos individuais para dar sentido a análises operacionais. Alguns psicólogos vêem a psicologia da Gestalt como uma influência sobre o movimento cognitivo. A “ênfase na organização, na estrutura, nas relações, no papel do sujeito e na importante função desempenhada pela percepção na aprendizagem e na memória reflete a influência dos seus antecedentes gestaltistas” (Hearst, 1979, p. 32). A psicologia da Gestalt ajudou a manter vivo ao menos um interesse periférico pela consciência no decorrer dos anos de domínio do comportamentalismo. Outro antecedente do movimento cognitivo é o psicólogo suíço Jean Piaget (1896-1980), que produziu importantes obras acerca do desenvolvimento infantil, não em termos de estágios psicossexuais ou psicossociais (propostos por Freud e Erikson), mas em termos de estágios cognitivos. As formulações piagetianas iniciais, publicadas nas décadas de 20 e 30, tiveram ampla influência na Europa, se bem que menos nos Estados Unidos, onde não eram compatíveis com a posição comportamentalista dominante. Entretanto, a ênfase de Piaget nos factores cognitivos foi bem recebida pelos primeiros proponentes do movimento cognitivo. À medida que as ideias dos psicólogos cognitivos avançaram nos Estados Unidos, a relevância do trabalho de Piaget tomou-se mais evidente; em 1969, Piaget tomouse o primeiro psicólogo europeu a receber o Distinguished Scientiflc Contribution Award da APA. Por se concentrar no desenvolvimento infantil, sua obra ajudou a ampliar a gama de comportamentos a que a psicologia em ascensão poderia ser aplicada. Quando deparamos com uma mudança importante na evolução de uma ciência, sabemos que ela reflete mudanças já em andamento em que funciona. Como vimos, uma ciência, assim como uma espécie viva, se adapta a novas exigências e condições do seu ambiente. Qual foi o clima intelectual que levou ao movimento cognitivo, que determinou um arrefecimento do comportamentalismo mediante a readmissão da consciência? Podemos examinar os ideais na física, com frequência um modelo para a psicologia, que tem influenciado o campo desde os seus primórdios como ciência. No início do século XX, desenvolvia-se uma nova perspectiva na física como resultado da obra de Albert Einstein, Niels Bohr, Werner Heisenberg e outros. Sua abordagem rejeitava o modelo mecanicista galileu-newtoniano do universo, o modelo de que a psicologia extraiu sua concepção mecanicista, reducionista, regular e previsível da natureza humana exposta por psicólogos de Wundt a Skinner. A nova perspectiva na física descartava o mundo clássico da objetividade total e a completa separação entre o mundo exterior e o observador. Esse novo modelo teve importantes implicações para a psicologia. O psicólogo suíço Jean Piaget propôs urna teoria do desenvolvimento infantil que tinha como foco processos cognitivos. Os físicos chegaram à constatação de que não podemos observar o curso da natureza sem perturbá-la. A separação artificial entre o observador e o observado, entre o mundo interior e o mundo exterior, entre o universo da experiência consciente e o universo da matéria, foi assim derrubada. O foco da investigação científica passou de um universo apreensível independente e objetivamente para a nossa observação desse universo. Os cientistas modernos, não mais apartados do foco de sua observação, seriam observadores-participantes. O ideal de uma realidade inteiramente objetiva foi considerado inalcançável. Hoje, a física é caracterizada pela crença de que aquilo que denominamos conhecimento objetivo é, na verdade, subjetivo, ou seja, depende do observador. Essa posição de que todo o conhecimento é pessoal soa tão suspeita quanto a proposta que George Berkeley fez há duzentos anos — a de que todo o conhecimento é subjetivo porque depende da natureza da pessoa que o percebe . Um autor descreveu a situação nos seguintes termos: nosso quadro do mundo, “longe de ser uma reprodução fotográfica genuína de uma realidade independente ‘lá fora’, antes semelhante à pintura: uma criação subjetiva da mente que pode transmitir uma semelhança mas nunca produzir uma réplica” (Matson, 1964, p. 137). A rejeição, pelos físicos, de um objeto de estudo objetivo, semelhante a uma máquina, e seu reconhecimento da subjetividade, restauraram o papel da experiência consciente na aquisição do nosso conhecimento do mundo. Essa revolução na física foi um argumento efectivo para a aceitação da consciência como parte legítima do objecto de estudo da psicologia. Embora resistisse à nova física por meio século, apegando-se a um modelo ultrapassado ao definir-se como ciência objectiva do comportamento, a psicologia científica terminou por responder ao ideal e modificou a sua forma para readmitir o papel da consciência. A Fundação da Psicologia Cognitiva Um exame retrospectivo do movimento cognitivo dá a impressão de uma transição lógica e rápida, algo da ordem de uma revolução, que abalou os alicerces do mundo psicológico em uns poucos anos. Na época, na verdade, nada disso era evidente. Essa dramática mudança na psicologia foi se fazendo lenta e calmamente, sem tambores nem fanfarras. De facto, “ninguém anunciou a sua existência até bem depois do facto” (Baars, 1986, p. 141). A progressão da história com frequência só fica clara depois que o evento acontece. Observamos que a fundação da psicologia cognitiva não ocorreu da noite para o dia nem pode ser atribuída à força e capacidade persuasiva de um único fundador , tal como John B. Watson, tenha mudado o campo quase que com as próprias mãos. Assim como a psicologia funcional, o movimento da psicologia cognitiva não pode reivindicar para si um fundador solitário, talvez, em parte (mais uma vez, tal como o funcionalismo), porque nenhum dos que trabalhavam na área tivesse a ambição pessoal de liderar um novo movimento. Seu único interesse era avançar com o trabalho de redefínir a psicologia. Não obstante, podem-se identificar duas pessoas que, embora não tenham sido fundadoras no sentido formal do termo, de facto contribuíram com trabalhos seminais na forma de um importante centro de pesquisas e um livro excelente, considerados marcos no desenvolvimento da nova psicologia cognitiva. Elas são George Miller e Ulric Neisser, e suas histórias ilustram alguns dos factores pessoais envolvidos na plasmação de novos movimentos. George Milier (1920 ) George Miller iniciou a carreira formando-se em inglês e no estudo da fala na Universidade do Alabama; fez o mestrado nesta última área, tendo-o terminado em 1941. Enquanto estudava no Alabama, revelou interesse pela psicologia. Deram-lhe um cargo de instrutor em que ele dava dezesseis aulas de introdução à psicologia sem nunca ter feito um curso no campo. Ele disse que, depois de ensinar o mesmo material dezesseis vezes por semana, passou a acreditar no que dizia. Miller foi para a Universidade Harvard trabalhar em problemas de comunicação vocal no laboratório de paicoacústica e, em 1946, doutorou-se. Dedicou-se ao estudo da psicolinguística, tendo publicado em 1951 Language and Comrnunication (Linguagem e Comunicação). Miller aceitou a posição comportamentalista dominante, observando que não tinha escolha, pois os comportamentalistas ocupavam todas as posições de liderança nas principais universidades e organizações profissionais. “O poder”, escreveu ele, “as honras, a autoridade, os manuais, o dinheiro, tudo em psicologia pertencia à escola comportamentalista... quem quisesse ser psicólogo científico de facto não podia se opor a ela. Você simplesmente não conseguiria um emprego” (Baars, 1986, p. 203). Na metade dos anos 50, depois de mergulhar na teoria estatística da aprendizagem, na teoria da informação e nas primeiras tentativas de simular a mente humana com computadores, Milier chegou à conclusão de que o comportamentalismo, como ele disse, não “ia funcionar”. As semelhanças entre as operações dos computadores e da mente humana o impressionaram, e o seu interesse começou a se transferir para uma psicologia de orientação mais cognitiva. Ao mesmo tempo, uma alergia a pêlos e ao produto da descamação dos animais significou a impossibilidade de Milier fazer pesquisas com ratos de laboratório. Ele só podia trabalhar com sujeitos humanos, uma desvantagem num mundo dominado por comportamentalistas. Além disso, a passagem de Miller para uma psicologia cognitiva teve a ajuda do seu espírito rebelde, que, segundo ele, tipificava muitos de sua geração de psicólogos. Ele e um grande número de outros estavam prontos a se revoltar contra o tipo de psicologia ensinada e praticada na época e a oferecer uma nova abordagem que se concentrasse antes em factores cognitivos do que comportamentais. Associando-se com um colega, Jerome Bruner (1915 ), que estudara com William McDougall, MilIer decidiu fundar um centro de pesquisas para a investigação da mente humana. Eles pediram espaço ao presidente de Harvard e, em 1960, receberam a casa em que William James um dia vivera, um lugar apropriado, já que James tinha se ocupado tão intensamente da natureza da vida mental. A escolha de um nome para o novo empreendimento não era uma questão trivial. Estando em Harvard, o empreendimento teria o potencial de exercer um enorme impacto sobre a psicologia, na verdade, de definir uma nova psicologia. Milier e Bruner preferiram a palavra cognição para denotar seu objecto de estudo e deram às novas instalações o nome de Centro de Estudos Cognitivos. Miller disse: Ao usar a palavra ‘cognição”, estávamos nos expulsando do comportamentalismo. Queríamos alguma coisa que fosse mental — mas “psicologia mental” parecia terrivelmente redundante. “Psicologia do senso comum” teria sugerido alguma espécie de investigação antropológica, e “psicologia popular” [ folclórica] teria sugerido a psicologia social de Wundt. Que palavra usar para rutular esse conjunto de perspectivas? Escolhemos cognição (Baars, 1986, p. 210). Dois dos primeiros alunos do centro se recordam de que ninguém ali poderia dizer o que a palavra cognição realmente significava ou o que se esperava que eles fizessem em favor dela. O centro, disseram eles, “não foi instalado para ser a favor de nenhuma coisa particular, mas para ser contra coisas. O que era importante era o que ele não era” (Norman e Levelt, 1988, p. 101). O movimento não era o comportamentalismo. Não era a autoridade dirigente, a posição estabelecida, a psicologia do presente. Ao definir o Centro, seus fundadores estavam demonstrando quão profundamente diferiam do comportamentalismo. E, como vimos ao tratar de todos os novos movimentos, proclamar de que modo sua posição ou atitude se distingue da escola de pensamento vigente é um estágio preliminar necessário à definição ulterior daquilo que se faz e da maneira como se deseja modificar o campo. George Miier montou um centro de pesquisas na Universidade Harvard para investigar tópicos cognitivos como a linguagem, a percepção e a formação de conceitos cognitivos fosse uma verdadeira revolução. Ele a considerava uma “adição”, isto é, um incremento ou mudança por crescimento ou acúmulo. Ele via o movimento mais como evolutivo do que como revolucionário, e acreditava que era um retomo a uma psicologia do senso comum que reconhece e afirma que a psicologia deve se ocupar da vida mental tanto quanto do comportamento. Uma ampla gama de tópicos, a maioria dos quais era tabu no léxico dos comportamefltalistas, foi investigada no Centro, incluindo a linguagem, a memória, a percepção, a formação de conceitos, o pensamento e a psicologia do desenvolvimento. Milier mais tarde estabeleceu o programa de ciências cognitivas e instalou o laboratório de ciências cognitivas na Universidade Princeton, onde continua a trabalhar. Como reconhecimento pelos seus eforços, Miller foi eleito presidente da APA em 1969 e recebeu seus Distinguished Scientifíc Contributiofl Award e Gold Medal Award for Life Achievemeflt in the Applicatiofl of Psychology. Talvez o maior reconhecimento do seu trabalho esteja no número de laboratórios e institutos de psicologia cognitiva que surgiram depois do seu, e no rápido desenvolvimento da abordagem de psicologia que ele tanto fez para defmir. Ulric Neisser (1928 ) Nascido em Kiel, Alemanha, Ulric Neisser foi levado para os Estados Unidos pelos pais aos três anos de idade. Começou seus estudos superiores em Harvard, concentrando-se em física. Impressionado com um jovem professor chamado George Milier, Neisser decidiu que a física não combinava com ele e passou para a psicologia. Fez um curso com Milier que tratava da psicologia das comunicações e veio a conhecer a teoria da informação e outros aspectos dos primeiros momentos da abordagem cognitiva. Também sofreu a influência do livro de Kurt Koffka, Princípios de Psicologia da OesLalt. Neisser fez o mestrado no Swarthmore Coilege, estudando com Wolfgang Kihler. Voltando a Harvard, doutorou-se em 1956. Apesar do seu crescente interesse por factores cognitivos, ele não viu como escapar das garras do comportamentalismo numa carreira académica. “Era o que você tinha de aprender”, disse ele. “Tratava-se de um momento em que se supunha que nenhum fenómeno psicológico era real a não ser que você pudesse demonstrá-lo num rato. Por exemplo, para estabelecer se o pensamento existia, tentava-se demonstrar que os ratos pensavam. Uma tarefa bastante peculiar, pelo menos a meu ver” (Baars, 1986, p. 275). Neisser considerava o comportamentalismo não somente peculiar como “louco”, e teve a felicidade de conseguir seu primeiro emprego acadêmico na Universidade Brandeis, onde o departamento de psicologia era dirigido por Abraham Maslow. Na época, Maslow começava a se afastar do seu próprio passado como comportamentalista e a desenvolver uma abordagem humanista. Maslow não teve sucesso em transformar Neisser em psicólogo humanista, nem em tornar a psicologia humanista a terceira força da psicologia — Neisser mais tarde afirmou que a terceira força era a psicologia cognitiva —, mas deu a Neisser a oportunidade de desenvolver seus interesses por assuntos cognitivos. Em 1967, Neisser publicou Cognitive Psychology (Psicologia Cognitiva), um livro que “estabeleceu e batizou o campo” (Goleman, 1983, p. 54). Ele conta que o livro era pessoal, na verdade uma tentativa de defmir a si mesmo, isto é, o tipo de psicólogo que era e que queria ser. O livro também ajudou a definir uma nova psicologia. Ele tomou-se extremamente popular, e Neisser viu-se diante do embaraço de ser apresentado como o “pai” da psicologia cognitiva. Ele não tinha desejo de fundar uma escola de pensamento, mas mesmo assim o seu livro ajudou a afastar a psicologia do comportamentalismo e a aproximá-la da cognição. Ufric Neisser, cujo livro de psicologia cognitiva publicado em 1967 ajudou a lançar o novo movimento, mais tarde veio a criticar o campo por sua estreiteza e artificialidade. Neisser definia a cognição com referencia aos processos “mediante os quais a entrada de dados sensoriais é transformada, reduzida, elaborada, armazenada, recuperada e usada.., a cognição está envolvida em tudo aquilo que um ser humano pode fazer” (Neisser, 1967, pp. 4-7). Assim, a psicologia cognitiva se vincula com a sensação, a percepção, a formação de imagens, a retenção, a recordação, a solução de problemas, o pensamento e todas as outras actividades mentais. Nove anos depois de publicar o livro que lançou o campo, Neisser publicou Cognition and Reality (Cognição e Realidade), no qual exprimia sua insatisfação com o que considerava o estreitamento da posição cognitiva e a tendência de acentuar situações artificiais de laboratório em lugar do mundo real. Desiludido, ele concluiu que o movimento de psicologia cognitiva tal como existente em 1976 não tinha quase nada de sua função de proporcionar uma compreensão da maneira como os seres humanos enfrentam a realidade. Assim, Neisser, uma das mais importantes figuras da fundação da psicologia cognitiva, tomou-se seu crítico feroz, atacando-a como ela antes atacara o comportamentalismo. Ele dá aulas atualmente na Univeridade Emory, de Atlanta, Geórgia, depois de passar dezessete anos em Comeil, onde o seu gabinete não ficava muito longe do cérebro em conserva de E. B. Titchener. O Papel do Computador na Psicologia Cognitiva No século XVII, os relógios e autómatos serviam de metáfora à concepção mecânica do universo e, por extensão, da mente humana.Essas máquinas eram modelos facilmente disponíveis e de simples compreensão da maneira como se dizia que a mente operava. Hoje, o modelo mecânico do universo e a psicologia comportamentalista dele foram superados por outros pontos de vista, a saber, a nova perspectiva na física e o movimento cognitivo em psicologia. É evidente que o relógio já não é um exemplo útil da concepção da mente do século XX. Uma nova metáfora é necessária, e uma máquina do século XX, o computador, veio a servir de modelo. Cada vez mais, é usado como modo de explicar fenómenos cognitivos. Afirma­se que os computadores exibem uma inteligência artificial, e seu funcionamento é corriqueiramente descrito em termos humanos. A capacidade de armazenamento de um computador, por exemplo, é a sua memória; os códigos de programação são chamados de linguagens; e afirma- se que novas gerações de computadores estão sendo desenvolvidas (Campbell, 1988; Roszak, 1986). Pode-se afirmar que a operação dos programas de computador — essencialmente conjuntos de instruções para trabalhar com simbolos — é semelhante à da mente humana. Tanto o computador como a mente recebem e digerem grande quantidade de informações (estímulos) do ambiente. Eles processam essa informação manipulando-a, armazenando-a e recuperando-a e realizando a partir dela várias operações. Logo, a programação dos computadores é o padrão da concepção cognitiva da capacidade humana de processar informações, raciocinar e resolver problemas. É o programa, e não o próprio computador (o software, e não o hardware), que serve de explicação às operações mentais. Os psicólogos cognitivos não têm interesse em eventuais correlatos fisiológicos dos processos mentais, mas na sequência de manipulação de simbolos que subjaz ao pensamento. Seu objectivo é descobrir a “biblioteca de programas que o ser humano tem armazenado na memória — programas que permitem que a pessoa compreenda e produza sentenças, de certas experiências e regras e resolva novos problemas” (Howard, 1983, p. 11). Essa concepção da mente humana baseada no processamento da informação fundamenta a psicologia cognitiva. Nos mais de cem anos de sua história, a psicologia passou dos relógios aos computadores como modelos do seu objeto de estudo — mas o significativo é que uns e outros são máquinas. Isso demonstra a continuidade histórica da evolução da psicologia entre pontos de vista mais antigos e mais novos. “Para os psicólogos, sempre em busca de garantias de que as suas teorias se refiram a alguma realidade fisicamente possível, o encanto das metáforas com máquinas é absolutamente irresistível” (Baars, 1986, p. 154). Ficamos a imaginar se a expressão “quanto mais as coisas mudam, tanto mais permanecem iguais” não contém uma lição acerca da história para aqueles que tentam aprender com ela. A Natureza da Psicologia Cognitiva Descrevemos de que maneira a introdução de factores cognitivos nas teorias da aprendizagem social de Albert Bandura e Julian Rotter contrabalançou a natureza do comportamentalismo americano , mas o impacto do movimento cognítivo não se limitou à psicologia comportamentalista. Os factores cognitivos estão sendo considerados em virtualmente todas as áreas do campo: a teoria da atribuição na psicologia social, a teoria da dissonência cognitiva, a motivação e a emoção, a personalidade, a aprendizagem, a memória, a percepção e, como observamos, a abordagem da tomada de decisões e da solução de problemas baseada no processamento da informação. Em áreas aplicadas como a clínica, a psicologia comunitária, a psicologia industrial/organizacional e a psicologia escolar também há ênfase em factores cognitivos. A psicologia cognitiva difere do comportamentalismo em vários pontos. Em primeiro lugar, os cognitivistas concentram-se no processo do conhecimento, e não na mera resposta a estímulos. Eles acentuam os processos e eventos mentais, e não as conexões estímulo­resposta, a mente, e não o comportamento — o que não significa que eles ignorem este último. Mas significa que as respostas comportamentais não constituem o objecto exclusivo de pesquisa. As respostas são usadas como fontes para a inferência dos processos mentais que as acompanham. Em segundo lugar, os psicólogos cognitivos se interessam pela forma como a mente estrutura ou organiza a experiência. Os gestaltistas, assim como Jean Piaget, alegaram que a tendência a organizar a experiência consciente (sensações e percepções) em todos e padrões significativos é inata. A mente dá forma e coerência à experiência mental, e o objecto de estudo da psicologia cognitiva é esse processo de organização. Os empiristas e associaclonistas británicos, e seus derivados do século XX, os comportamentalistas skinnerianos, sustentavam que a mente não possui essas capacidades organizacionais inerentes. Em terceiro lugar, na concepção cognitiva, o indivíduo organiza activa e criativamente os estímulos recebidos do ambiente. Somos capazes de participar da aquisição e do uso do conhecimento, atentando deliberadamente para alguns aspectos da experiência e optando por guardá-los na memória. Não respondemos passivamente a forças externas nem somos lousas em branco em que a experiência sensorial é escrita. Você vai reconhecer esta última ideia como a posição comportamentalista, derivada dos empiristas e associacionistas. Observamos que muitas áreas de pesquisa foram influenciadas pelo movimento cognitivo. Em uma dessas, o sono e o sonho, estudos experimentais identificaram o sono REM (Rápidos Movimentos Oculares) como o estágio em que ocorre a maioria das actividades oníricas; esse trabalho oferece um excelente exemplo da combinação de dados fisiológicos objectjvos e dados conscientes subjectivos. Os sonhos são produtos conscientes, e sua relação comprovada com processos fisiológicos subjacentes toma esses dados subjectivos mais aceitáveis na psicologia actual. Essas experiências conscientemente recordadas não teriam sido admitidas pelo referencial comportamentalista estrito. Pesquisadores cognitivos que investigam o processamento da informação durante o sono se ocupam de fenómenos como a transferência para o sono de respostas condicionadas adquiridas no estado vígil, o efeito de sugestões verbais feitas durante o sono e a tentativa de melhorar o desempenho mediante a aprendizagem durante o sono (Bootzin, Kihlstrom e Schacter, 1990). Também essas são experiências cognitivas que não poderiam ter sido discutidas, e menos ainda estudadas seriamente, sob a égide do comportamentalismo. Os psicólogos também estão estudando o efeito de drogas sobre o comportamento em termos das mudanças tanto nas respostas físiológicas como nas experiências conscientes relatadas — aquilo que as pessoas fazem sob a influência de drogas e aquilo que elas dizem que sentem. Esses dados eram igualmente inadmissíveis para os comportamentalistas. Mesmo processos não conscientes em que as pessoas aprendem a controlar funções fisiológicas como a taxa de batimentos cardíacos, a tensão muscular e a temperatura do corpo, em basear-se mais em processos cognitivos do que antes se supunha. Os terapeutas que usam o biofeedback estão dando uma atenção maior ao papel das metas e expectativas dos pacientes na produção das mudanças fisiológicas desejadas. Com a volta à psicologia do estudo dos processos mentais conscientes, o interesse pelos processos mentais inconscientes, outra área banida pelos comportamentalistas, foi impulsionado. As pesquisas de tópicos como a atenção selectiva, a hipnose, a percepção subliminar e os fenómenos visuais que envolvem o processamento perceptivo sugerem que o primeiro estágio da cognição em resposta à estimulação é inconsciente (Kihlstrom, 1987; Shevrin e Dickman, 1980). Sob o impacto do movimento cognitivo, volta-se a atribuir consciência aos animais. As pesquisas sobre cognição animal inferem evidências de consciência animal a partir de observações do comportamento, particularmente do comportamento que demonstra adaptabilidade à mudança de condições ambientais (Domjan, 1987; Pearce, 1987). Essa obra se concentra na capacidade dos animais de pensar sobre objectos e eventos específicos, mesmo quando esses objectos e eventos não estão presentes, e de iniciar alguma acção. Outros trabalhos demonstraram que existem na memória animal processos mentais como a codificação e a organização de símbolos, bem como a capacidade de formar abstrações básicas sobre o espaço, o tempo e o numero (Gailistel, 1989; Roitblat, Bever e Terrace, 1984). Com a influência cognitiva na psicologia experimental e a ênfase na consciência na psicologia humanista e na psicanálise pós-freudiana, podemos ver que a consciência retomou a posição central em psicologia que ocupava há cem anos, celebrando assim um substancial e vigoroso retorno. Comentários: O movimento cognitivo tem sido obviamente um sucesso. No início dos anos 70, o campo atraira tantos seguidores que precisava de suas próprias publicações. No curso de uma década, foram fundadas seis: Cognitive Psychology (1970), Cognition (1971), Meínory and Cognition (1983), Journal of Mental Imagery (1977), Cognitive Therapy and Research (1977) e Cognítíve Science (1977). Jerome Bruner descreveu a psicologia cognitiva como “uma revolução cujos limites ainda não podemos vislumbrar” (Bruner, 1983, p. 274). Seu impacto alcançou a maioria das áreas da psicologia e, saindo dos Estados Unidos, influenciou o pensamento psicológico na Europa e na ex-União Soviética. Ela também se estendeu para além da psicologia. “Talvez o mais estimulante desenvolvimento recente advindo da revolução cognitiva seja uma nova tendência na direcção da integração de todas as principais disciplinas dedicadas ao estudo da natureza do conhecimento” (Baars, 1986, p. 180). Essa nova perspectiva proposta, apelidada de “ciência cognitiva”, é um amálgama de psicologia cognitiva, linguística, antropologia, filosofia, ciências computacionais, inteligência artificial e das neurociências. Embora George Miller tenha questionado o ponto até o qual esses campos díspares de estudo podem se unificar, sugerindo que se deveria usar nas referências a eles a forma plural, ciências cognitivas, não há como negar o desenvolvimento dessa abordagem multidisciplinar. Têm sido estabelecidos em universidades de todos os Estados Unidos laboratórios e institutos de ciência cognitiva, e alguns departamentos de psicologia foram rebatizados como departamentos de ciência cognitiva. Tudo isso sugere que, qualquer que seja o nome que lhe demos, o estudo dos fenómenos e processos mentais pode dominar não apenas a psicologia como outras disciplinas, pela década de 90 e até o século XXI. Nenhuma revolução, por mais bem-sucedida, deixa de ter críticos. A maioria dos comportamentalistas skinnerianos se opõe ao movimento cognitivo (Sldnner, 1987b, 1989), e até os que são a favor assinalaram fraquezas e limitações. Eles alegam que há poucos conceitos com os quais a maioria dos psicólogos cognitivos concorde, ou até considere importantes, e que há uma considerável confusão no tocante à temiinologia e às defmições. Outra crítica está relacionada com o que alguns vêem como um excesso de ênfase na cognição em detrimento de outras influências sobre o pensamento e o comportamento, tais como a motivação e a emoção. O número de livros e artigos profissionais sobre a motivação e a emoção tem declinado muito nas últimas duas décadas, enquanto a literatura sobre a cognição tem aumentado (Pervin, 1985). O resultado, como sugeriu Ulric Neisser, é o estreitamento e a esterilidade do campo. Neisser comentou que “o pensamento humano é passional e emocional, as pessoas operam a partir de motivos complexos. Um programa de computador, em contrapartida... não tem emoções e é monomaníaco em sua franqueza” (Goleman, 1983, p. 57). Há o perigo de que a psicologia cognitiva esteja ficando demasiado unilateral, concentrando-se apenas no pensamento na mesma medida que a escola anterior se concentrava somente no comportamento. Outros críticos dizem que o progresso da psicologia cognitiva é mais ilusório do que real, pois muitos psicólogos apenas adotaram as palavras cognitivo ou cognição sem fazer nenhuma alteração fundamental no modo como abordam seus problemas de pesquisa. B. F. Skinner observou que ficou “elegante inserir a palavra cognitivo’ sempre que possível” (Skinner, 1983b, p. 194). George Miller concorda: O que parece ter acontecido é que muitos psicólogos experimentais que estavam estudando a aprendizagem, a percepção ou o pensamento humanos começaram a se denominar psicólogos cognitivos sem alterar de qualquer maneira visível aquilo que sempre estiveram pensando e fazendo — como se de repente descobrissem que estiveram falando psicologia cognitiva a vida inteira. Desse modo, a nossa vitória pode ter sido mais modesta do que o registro escrito pode ter levado vocês a acreditar (Bruner, 1983, p. 126). A psicologia cognitiva ainda não se completou; ela ainda não é história. O movimento está se formando, crescendo e se desenvolvendo; ainda é história no seu processo de vir-a-ser. É muito cedo para julgar seu impacto e sua contribuição fmais. Mas a psicologia cognitiva efectivamente tem os atrativos e as características que definem cada uma das escolas de pensamento anteriores. A psicologia cognitiva tem suas próprias publicações, seus próprios laboratórios, reuniões, jargão e convicções, bem como o zelo dos justos. Hoje falamos de cognítivismo, assim como falamos de funcionalismo e comportamentalismo. A psicologia cognitiva tornou-se o que outras escolas de pensamento se tornaram em sua época: parte da corrente principal da psicologia. E isso, como vimos, é a progressão natural das revoluções e dos movimentos quando eles alcançam sucesso. Uma Observação Final Caros estudantes do ISEDEF, primeiro Ano do Curso de Psicologia Escolar, se nos diz alguma coisa, a história da psicologia retratada nestas discussões, diz que, quando um movimento é formalizado como escola, ele ganha um impulso que só pode ser interrompido pelo seu próprio êxito na derrubada da posição estabelecida sucessivamente. Quando isso acontece, as artérias desobstruídas do movimento um dia vigoroso e jovem começam a endurecer. A flexibilidade se torna rigidez, a paixão revolucionária se transforma em defesa de uma posição e os olhos e mentes começam a se fechar a novas ideias. Assim nasce uma nova posição estabelecida. E assim é no progresso de toda ciência: há uma construção evolutiva para níveis cada vez mais elevados de desenvolvimento. Não há ponto culminante — nenhum término nem fim —, mas um processo interminável de crescimento, à medida que espécies mais novas se desenvolvem a partir das antigas e tentam se adaptar a um ambiente em contínua mudança. Este curso tem como propósito formar o homem ideal de Moçambique “HOMEM SÁBIO E APRENDENTE SOBRETUDO UM CÉREBRO DE BIOINOVAÇÃO”. BIBLIOGRAFIA www.dr-anly.blogspot.com 1. BOCK, Ana Mercês Bahia. FURTADO , Adair. TEXEIRA, Maria de Lurdes Trassi(2008) .Psicologias, Uma Introdução ao estudo de Psicologia.14ª edição, Saraiva Editores, São Paulo. 2. CAPARRÓS, António.(s/d) História da Psicolgia, 1ª edição, Platano Edições Técnica. 3. 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