segunda-feira, 3 de agosto de 2020

MANUAL 4 DA CADEIRA DE HISTÓRIA E SISTEMAS DE PSICOLOGIA, PARA O CURSO DE PSICOLOGIA ESCOLAR, 1º ANO. ANO LECTIVO 2020/2021- ISEDEF. DOCENTE: SILVA ANLI; site:dr-anly.blogspot.com “CLUBE DE OPINIÃO CIENTÍFICA”; email:dr.anly1962@gmail.com Caros estudantes do Curso de Psicologia Escolar-ISEDEF, vamos agora entrar numha renhida discussão do decurso de HSP- HISTÓRIA E SISTEMS DE PSICOLOGIA O ESTRUTURLISMO O Método de Estudo: Introspecção - Os Elementos da Consciência E. B. Titchener alterou dramaticamente o sistema de Wundt, enquanto jurava ser um seguidor leal. Ele propôs a sua própria abordagem, a que deu o nome de estruturalismo, e afirmou que ela representava a forma de psicologia esposada por Wundt. Contudo, os dois sistemas eram radicalmente diferentes, e o rótulo estruturalismo não pode ser aplicado à psicologia de Wundt, mas sim à obra de Titchener. A psicologia estrutural atingiu nos Estados Unidos uma proeminência que durou vários anos, até ser desafiada e derrubada por movimentos mais novos. Embora Titchener fosse sem dúvida uma influente figura da história da psicologia americana, seus contemporâneos, como veremos nas discussões seguintes, estavam desenvolvendo diferentes defmições de psicologia. Wilhelm Wundt reconhecia elementos ou conteúdos da consciência, mas a sua atenção se concentrava primordialmente na organização ou síntese desses elementos em processos cognitivos de nível superior mediante o principio da apercepção. Para ele, a mente tem o poder de sintetizar espontaneamente elementos, uma posição que contrariava a noção mecânica e passiva da associação favorecida pela maioria dos empíristas e assocíacionistas britânicos. Titchener aceitou o foco empirista e associacionista sobre os elementos ou conteúdos mentais e sua ligação mecânica através do processo da associação. Descartou a ênfase wundtiana na apercepção e se concentrou nos elementos que compõem a estrutura da consciência. Segundo Titchener, a tarefa fundamental da psicologia é descobrir a natureza dessas experiências conscientes elementares ou seja, analisar a consciência em suas partes separadas e, assim, determinar sua estrutura. Para consegui-lo, Titchener modificou o método introspectivo de Wundt, tornando-o mais parecido com o de Kulpe. Edward Bradford Titcheiwr (1867-1927) Nascido em Chichester, Inglaterra, numa família tradicional com pouco dinheiro, Titchener empregou suas consideráveis capacidades intelectuais para ganhar bolsas de estudo que lhe permitissem prosseguir em sua educação. Estudou no Colégio Malvern e na Universidade Oxford, dedicando-se à filosofia e aos clássicos nos quatro primeiros anos e tornando-se, no quinto, assistente de pesquisa em fisiologia. Enquanto estava em Oxford, Titchener interessou-se pela nova psicologia de Wundt, interesse que não foi encorajado nem compartilhado por ninguém da universidade. Era natural, pois, que ele fizesse uma jornada a Leipzig, a Meca dos peregrinos científicos, para estudar com Wundt, tendo obtido o grau de doutor em 1892. Parece não haver dúvida de que Wundt deixou uma impressão permanente no jovem aluno, embora Titchener, aparentemente, tivesse tido pouco contacto com ele. Os anos de Titchener em Leipzig determinaram o seu futuro na psicologia e o de seus muitos alunos. Ele teve um impacto sobre a psicologia americana, mas dentro de pouco tempo, a psicologia na América iria seguir seu próprio curso, numa direcção que divergia da abordagem de Titchener. Tendo recebido o seu grau, Titchener planejou tornar-se o pioneiro da nova psicologia experimental na Inglaterra. Os acadêmicos ingleses, no entanto, mostravam-se céptícos diante da abordagem científica de um dos seus tópicos filosóficos favoritos. Portanto, poucos meses depois de dar um curso de extensão em biologia em Oxford, Titchener foi para os Estados Unidos ensinar psicologia e dirigir o laboratório da Universidade Cornell. Tinha vinte e cinco anos e permaneceu em Comell o resto da vida. Entre 1893 e 1900, ele desenvolveu seu laboratório, comprando equipamentos, fazendo pesquisas e escrevendo sessenta e dois artigos. À medida que sua reputação ia atraindo um número cada vez maior de alunos para Comell, ele ia se afastando da exigente tarefa de participar pessoalmente de cada pesquisa; nos últimos anos, elas eram feitas quase que inteiramente pelos seus alunos. No cômputo geral, ele ‘publicou muito poucos trabalhos experimentais com o seu próprio nome. Tal como Wundt, pôs-se à frente de suas iniciativas de pesquisa, defendendo-as, vinculando-as com outros empreendimentos, divulgando-as para alunos, profissionais e leigos” (Tweney, 1987, p. 40). Assim, foi através da orientação das pesquisas dos alunos que sua posição sistemática chegou à plenitude. Ele supervisionou mais de cinqüenta teses de doutorado em psicologia ac longo de trinta e cinco anos, e a maioria dessas dissertações traz a marca do seu pensamento pessoal. Ele exercia sua autoridade na selecção dos tópicos de pesquisa, distribuindo os que estavam vinculados às questões que o interessavam. Ele esperava que todos os alunos graduados trabalhassem colectivamente a partir de suas ideias e, assim, construiu uma posição sistemática unificada, que considerava “a unica psicologia científica digna desse nome” (Roback, 1952, p. 184). Titchener traduziu do alemão para o inglês alguns livros de Wundt. Quando completou a tradução da terceira edição dos Princípios de Psicologia Fisiológica, de Wundt, descobriu que este já terminara a quarta. Ele traduziu a quarta, apenas para saber que o incansável mestre tinha publicado a quinta. Entre os livros de Titchener estão Au Outline o! Psychology (Esboço de Psicologia) (1896), Primei of Psychology (Introdução à Psicologia) (1898) e a obra em quatro volumes 105. O estruturalismo foi estabelecido por Edward Bradford Titchener como a primeira escola americana de pensamento no campo da psicologia. Experimental Psychology (Psicologia Experimental) (1901-1905). Afirma-se que Külpe descreveu este último trabalho como “a mais erudita obra de psicologia em língua inglesa” (Boring, 1950, p. 413). Mesmo hoje, a Psicologia Experimental de Titchener é incluída “entre os mais importantes livros da história da psicologia” (Benjamin, 1988a, p. 210). Esses manuais, como os volumes individuais da obra vieram a ser chamados, promoveram o desenvolvimento do trabalho de laboratório em psicologia nos Estados Unidos e influenciaram toda uma geração de psicólogos experimentais, incluindo os que mais tarde divergiram da psicologia estrutural. Entre estes estava John B. Watson, o fundador da escola comportamental de pensamento. Os manuais de Titchener gozaram de ampla popularidade, tendo sido traduzidos para o russo, o italiano, o alemão, o espanhol e o francês. Titchener dedicou-se a várias actividades que consumiram tempo e energia. Regia um pequeno conjunto musical em sua casa todas as noites de domingo e, durante muitos anos, foi “professor substituto de música” em Comell, antes da implantação de um departamento de música. Seu interesse em colecionar moedas levou-o, com dedicação típica, a aprender chinês e árabe para entender os caracteres gravados nas moedas. Também era versado em meia dúzia de línguas modernas. Mantinha uma volumosa correspondência com colegas; a maioria das cartas era datilografada, mas continha acréscimos feitos à mão. À medida que envelhecia, Titchener ia se afastando da vida social e académica. Era considerado uma lenda viva em ComeIl, embora um número crescente de professores jamais o tivesse conhecido ou mesmo visto. Ele fazia boa parte do seu trabalho no estúdio, em casa, e passava relativamente pouco tempo na universidade. A partir de 1909, só dava aulas nas tardes de segunda-feira no semestre de primavera de cada ano. Sua esposa selecionava todos os visitantes e o protegia de intrusões do mundo exterior; estava entendido que nenhum aluno devia telefonar para ele excepto em caso de emergência extrema. Embora fosse autocrático à maneira de um mestre alemão, Titchener também era gentil e prestativo com os alunos e colegas, desde que eles o tratassem com a deferência e o respeito que ele considerava merecer. Fala-se de jovens docentes e estudantes graduados que lavavam o seu carro e instalavam cortinas em sua casa no verão — não porque alguém lhes ordenasse isso, mas por respeito e admiração. Um ex-aluno, Karl Dallenbach, cita uma declaração de Titchener segundo a qual “um homem não pode ter a esperança de se tornar psicólogo enquanto não tiver aprendido a fumar” (Dallenbach, 1967, p. 91). Seguindo isso, muitos dos seus alunos passaram a fumar charutos, ao menos na presença do mestre. Outra doutoranda, Cora Friedline, estava discutindo sua pesquisa no gabinete de Titchener quando o seu indefectível charuto começou a queimar-lhe a barba. Ele estava falando nesse momento e sua imponência levou-a a hesitar em interrompê-lo. Por fim, ela disse: ‘Queira perdoar-me, dr. Titchener, mas suas suíças estão em chamas.” Quando ele fmalmente apagou o fogo, este já tinha começado a queimar-lhe a camisa e a camiseta. A atenção de Titchener para com os alunos não terminava quando eles deixavam Cornell, nem o seu impacto sobre a vida deles. Dallenbach, ao receber seu grau de doutor, pretendia ir para a escola médica, mas Titchener conseguiu-lhe um cargo de professor na Universidade de Oregon. Dallenbach pensara que Titchener aprovaria sua ida para a escola médica, mas estava enganado. “Tive de ir para Oregon, pois ele não pretendia que o seu treinamento e trabalho comigo se perdessem” (Dallenbach, 1967, p. 91). As relações de Titchener com psicólogos fora do seu grupo eram por vezes tensas. Eleito em 1892 para a Associação Psicológica Americana pelos membros fundadores, demitiu-se pouco depois porque a associação se negou a expulsar um membro que ele acusara de plágio. Conta-se que um amigo pagou as cotas de Titchener por alguns anos para que o seu nome continuasse a figurar como membro da APA. Em 1904, formou-se um grupo de psicólogos chamados “Experimentalistas de Titchener”, que se reunia regularmente para comparar resultados de pesquisas. Titchener selecionava os tópicos e os convidados, e, de modo geral, dominava as reuniões. Uma das regras do encontro era não permitir a presença de mulheres. Seu aluno E. G. Boring comentou que Titchener “queria relatos orais que pudessem ser interrompidos, contestados e criticados numa sala cheia de fumaça sem a presença de mulheres — porque, em 1904, quando o grupo dos Experimentalistas foi formado, as mulheres eram consíderadas demasiado puras para fumar” (Boring, 1967, p. 315). Várias mulheres que estudavam no Colégio Bryn Mawr, da Pensilvânia, tentaram frequentar as reuniões, mas eles as mandaram embora. Numa dada ocasião, elas se esconderam debaixo de uma mesa durante toda a sessão. A noiva de Boring e outra mulher esperaram na outra sala “com a porta entreaberta para ouvir como era a psicologia masculina livre de expurgos. Elas sairam ilesas” (Boring, 1967, p. 322). Afirma-se que Titchener não estava tanto discriminando deliberadamente as mulheres quanto reflectindo as atitudes patriarcais da época. Dos cinquenta e seis doutorados que outorgou, mais de um terço foi a mulheres, uma proporção bastante elevada para a época (Furumoto, 1988). A primeira mulher a receber um Ph.D. em psicologia, e o primeiro doutorando de Titchener, foi Margaret Floy Washburn. “Ele não sabia bem o que fazer comigo”, recorda-se ela (Washburn, 1932, p. 340). Ela havia escolhido a Universidade Colúmbia, mas eles não admitiam mulheres para os cursos de pós-graduação. Titchener a aceitou, e ela, depois de receber o grau em Corneill, teve uma bem-sucedida carreira no campo da psicologia. Suas contribuições profissionais incluem um importante livro sobre psicologia animal e a presidência da Associação Psicológica Americana. Por volta de 1910, Titchener começou a trabalhar no que concebeu como uma exposição completa do seu sistema. Infelizmente, faleceu de tumor cerebral aos sessenta anos, antes de terminar a obra. Algumas de suas partes foram publicadas numa revista e, mais tarde, reproduzidas num livro póstumo. Conta-se que o cérebro de Titchener foi conservado e está em Comell em exibição. O Sistema de Psicologia de Titchener De acordo com Titchener, o objeto de estudo da psicologia é a experiência consciente. Todas as ciências, observou ele, compartilham desse objecto, uma parcela do mundo da experiência humana , mas cada qual se ocupa de um aspecto diferente. O objeto de estudo da psicologia é a experiência enquanto dependente das pessoas que passam por ela. Esse tipo de experiência difere da estudada pelos cientistas de outros campos. Por exemplo, a luz e o som são estudados por físicos e psicólogos. Os físicos vêem esses fenómenos da perspectiva dos processos físicos envolvidos; os psicólogos os vêem em termos do modo como são vivenciados pelo observador humano. Outras ciências, disse Titchener, citando o exemplo da temperatura, são independentes das pessoas que passam pela experiência. A temperatura de uma sala pode ser de 35° haja ou não alguém na sala para senti-la. Contudo, quando há observadores na sala que relatam que o calor os incomoda, essa sensação é vivenciada por essas pessoas e depende delas. Essa experiência é que é objecto de estudo da psicologia. Titchener alertou para o facto de que, no estudo da experiência consciente, não se deve cometer o que ele denominou erro de estímulo, isto é, confundir o processo mental com o estímulo ou com o objecto observado. Por exemplo, observadores que vêem uma maçã e a descrevem como maçã, em vez de falar das tonalidades, do brilho e das características espaciais que percebem, cometem o erro de estímulo. O objecto da observação não deve ser descrito com a linguagem cotidiana, mas sim em termos do conteúdo consciente da experiência Quando se concentra no objecto-estímulo e não no processo consciente, o observador não distingue o que sabe sobre o objeto (o facto de ele ser chamado de maçã) de sua própria experiência imediata. Tudo o que o observador sabe de facto sobre um objecto tal como uma maçã é a sua cor, o seu brilho e o seu padrão espacial (que ela é vermelha, reluzente e redonda). Quando descreve qualquer coisa que não tem essas características, o observador interpreta o objecto, em vez de observá-lo e, assim, trata da experiência mediata, e não da imediata. Titchener definiu a consciência como a soma das nossas experiências num dado momento de tempo, e a mente como a soma das nossas experiências acumuladas ao longo da vida. Mente e consciência são realidades semelhantes, mas, enquanto a consciência envolve processos mentais que ocorrem no momento, a mente envolve o acúmulo total desses processos. A psicologia estrutural de Titchener é uma ciência pura. Ele alegava que a psicologia tem de estudar, e chegar a compreender, a mente humana generalizada, não as mentes individuais e, certamente, não as diferenças individuais entre as mentes. Sua psicologia, portanto, não tem preocupações pragmáticas ou utilitárias. A psicologia, segundo ele, não se ocupa da questão da cura de “mentes enfermas”, nem da reforma de indivíduos ou da sociedade. Seu único propósito legítimo é descobrir os factos ou a estrutura da mente. Ele acreditava que os cientistas têm de manter-se livres de preocupações com o valor prático de sua obra, e declarava sem subterfúgios sua oposição à psicologia infantil, à psicologia animal e a outras áreas não compatíveis com sua psicologia experimental introspectiva do conteúdo da consciência. O Método de Estudo: Introspecção A psicologia, como todas as ciências, depende da observação, mas da observação da experiência consciente. A forma de auto-observação de Titchener, ou introspecção, era realizada por observadores bem treinados que tinham de reaprender a perceber para que pudessem descrever seu estado consciente, e não o estímulo. Titchener percebeu que todos aprendem a descrever a experiência em termos do estímulo, como é o caso de passar a chamar um objecto vermelho, reluzente e redondo de maçã, e que, na vida cotidiana, isso é benéfico e necessário. No laboratório, entretanto, essa prática tinha de ser desaprendida mediante um treinamento intensivo. Para descrever sua abordagem, Titchener adotou o rótulo de Külpe, introspecção experimental sistemática. Tal como Külpe, ele usava relatos detalhados, qualitativos e subjectivos das actividades mentais do sujeito durante o acto da introspecção. Ele se opunha à abordagem wundtiana, com seus equipamentos e sua concentração em medidas objectivas, e, em 1912, criticou publicamente o tipo de pesquisa feito no laboratório de Leipzig: Quem se lembra dos laboratórios da psicologia de vinte anos atrás dificilmente consegue conter o espanto diante do contraste que, no momento, expõe num vivido relevo a diferença entre a antiga e a nova ordem. O experimentador de antigamente [ década de 1890] confiava sobretudo em seus instrumentos; o cronoscópio, o quimógrafo e o taquistoscópio tinham, e dificilinente exagero em dizer, mais importância do que o observador. Havia ainda vastidões da vida mental que os experimentos não tinham tocado (Titchener, , 1912, p. 427). As vastidões da vida mental a que Titchener se referia eram as sensações e imagens elementares, que, a seu ver, formavam a estrutura da consciência. Elas eram o cerne da sua psicologia — não a síntese dos elementos por meio da apercepção (de que Wundt se ocupava), mas a análise da experiência consciente complexa em termos de suas partes componentes. Titchener enfatizava as partes, enquanto Wundt destacava o todo. Essa é uma concepção que Titchener pode ter adquirido na obra de James Mill, Análise dos Fenómenos da Mente Humana. Seguindo a maioria dos empiristas e associacionistas britânicos, o objectivo de Titchener era descobrir os átomos da mente. Titchetier também foi influenciado pela doutrina do mecanismo, e o espírito mecanicista é evidente na imagem estruturalista dos observadores que lhe forneciam dados. Nos relatórios de pesquisa publicados na época, os sujeitos eram por vezes chamados de reagentes, termo usado pelos cientistas para denotar substâncias que, por causa de sua capacidade de ter certas reações, são usadas para detectar, examinar ou medir outras substâncias. Um reagente costuma ser um agente passivo que é aplicado a alguma coisa para produzir determinadas respostas. O paralelo com a química é evidente. Transpondo esse conceito aos observadores humanos do laboratório de Titchener, vemos que seus sujeitos eram considerados instrumentos de registo que anotavam objectivamente as características do estímulo que observavam. Os sujeitos não passavam de máquinas imparciais e isoladas. Titchener escreveu que a observação treinada se tornaria mecanizada ou habitual, deixando de ser um processo consciente. Se sujeitos humanos são considerados máquinas, é fácil pensar que todos os seres humanos são máquinas. Essa concepção mostra o impacto permanente da visão mecânica do universo de Galileu e de Newton, uma influência que não desapareceu com a eventual queda do estruturalismo. Veremos, à medida que a história da psicologia se desenrola, que essa imagem do ser humano como máquina caracterizou boa parte da psicologia experimental na primeira metade do século XX.. Titchener acreditava que a observação em psicologia tem de ser não só introspectiva como experimental. Ele observava com diligência as regras da experimentação científica, notando que um experimento é uma observação que pode ser repetida, isolada e variada. Quanto maior a frequência com que se pode repetir uma observação, tanto mais provável é ver claramente o que ela é e descrever com precisão o que se viu. Quanto mais rigorosamente se pode isolar uma observação, tanto mais fácil fica a tarefa de observar, e tanto menor é o perigo de se ser confundido por circunstâncias irrelevantes ou de acentuar o ponto errado. Quanto mais amplamente se puder variar uma observação, tanto mais claramente a uniformidade da experiência se revelará e tanto maiores serão as oportunidades de se descobrirem leis. Todos os apetrechos experimentais e todos os laboratórios e instrumentos são fornecidos e planeados com este objectivo em vista: permitir que o estudioso possa repetir, isolar e variar suas observações (Titchener, 1909, p. 20). Os reagentes e sujeitos do laboratório de Titchener faziam introspecções com uma variedade de estímulos, fornecendo extensas e detalhadas observações dos elementos de suas experiências. A introspecção era um empreendimento sério, e os sujeitos, estudantes graduados, tinham de dedicar-se muito para realizar o que Titchener denominava o ‘duro trabalho de introspecção”. A doutoranda de Titchener, Cora Friedline, se recorda da época em que o laboratório de Comell estudava a sensibilidade orgânica. Pediu-se aos observadores que engolissem um tubo que ia até o estômago pela manhã e o mantivessem ali ao longo do dia. Muitos deles primeiro vomitavam (pois não tinham estômago para cumprir a tarefa), mas aos poucos foram se acostumando. Entre as aulas e outras actividades, eles iam ao laboratório. Ali, jogava-se água aquecida pelo tubo, e eles faziam a introspecção das sensações que experimentavam. O processo mais tarde foi repetido com água gelada. A introspecção às vezes se intrometia na vida particular dos estudantes graduados. Por algum tempo pediu-se a eles que levassem livros de anotações quando usassem o banheiro e registrassem suas sensações e sentimentos quando urinavam e defecavam. Outra informação sobre pesquisas introspectivas fornece um exemplo de dados perdidos para a história. Estudantes graduados casados receberam a tarefa de anotar suas sensações e sentimentos elementares durante o acto sexual e de ligar instrumentos de medida ao corpo para registrar mudanças fisiológicas. Essa pesquisa em geral não era publicada na época, tendo sido revelada por Cora Friedline em 1960. Mas era conhecida do campus da Universidade Cornell, o que deu ao laboratório de psicologia a reputação de lugar imoral. A encarregada do dormitório feminino não permitia que as alunas visitassem o laboratório depois que escurecia. Quando surgiu o boato de que estavam sendo colocadas camisinhas nos tubos que os alunos estavam engolindo, dizia-se no dormitório que “o laboratório estava cheio de camisinhas, não sendo um lugar seguro para se ir”. O trabalho de pesquisa mais rotineiro do laboratório de Titchener está descrito na transcrição de um material original apresentado adiante. Os Elementos da Consciência Para Titchener, os três problemas ou finalidades da psicologia eram:  (1) reduzir os processos conscientes aos seus componentes mais simples ou mais básicos;  (2) determinar as leis mediante as quais esses elementos se associam;  e (3) conectar esses elementos às suas condições fisiológicas. Logo, os objectivos da psicologia coincidem com os das ciências naturais. Depois de decidir sobre que parte do mundo natural desejam estudar, os cientistas passam a descobrir seus elementos, para demonstrar de que maneira eles se combinam em fenómenos mais complexos e para formular as leis que governam esses fenómenos. O grosso dos esforços de Titchener estava para o primeiro problema, a descoberta dos elementos da consciência. Titchener propôs três estados elementares de consciência: sensações, imagens e estados afectivos. As sensações são os elementos básicos da percepção e ocorrem nos sons, nas visões, nos cheiros e em outras experiências evocadas por objectos físicos do ambiente. As imagens são elementos de ideias e estão no processo que retrata ou reflecte experiências não concretamente presentes no momento, como a lembrança de uma experiência passada. Não fica claro nos escritos de Titchener se ele considerava sensações e imagens como mutuamente exclusivas. Ele acentuava as semelhanças entre elas ao mesmo tempo em que alegava que era possível distingui-las umas das outras. Os estados afectivos (afetos ou sentimentos) são elementos da emoção, estando presentes em experiências como o amor, o ódio ou a tristeza. No Esboço de Psicologia (1896), Titchener apresentou uma relação dos elementos da sensação descobertos em sua pesquisa, que incluía mais de 44.000 qualidades de sensação, sendo 32.820 visuais e 11.600 auditivas. Acreditava-se que cada elemento era consciente e diferente de todos os outros, e que podiam se combinar para formar percepções e ideias. Embora básicos e irredutíveis, esses elementos podiam ser categorizados, do mesmo modo como elementos químicos são agrupados em várias classes. Aos atributos wundtianos de qualidade e intensidade, Titchener acrescentou a duração e a nitidez. Ele considerava esses quatro atributos características básicas de todas as sensações que estão presentes, num certo grau, em toda experiência. A qualidade é a característica — como “frio” ou “vermelho” — que distingue claramente cada elemento de todos os outros. A intensidade se refere à força ou fraqueza, sonoridade ou brilho de uma sensação. A duração remete ao curso de uma sensação ao longo do tempo. A nitidez está vinculada com o papel da atenção na experiência consciente; aquilo que constitui o foco de nossa atenção é mais nítido do que aquilo para onde a atenção não é dirigida. As sensações e imagens têm esses quatro atributos, mas os estados afectivos só têm qualidade, intensidade e duração, faltando-lhe nitidez. Titchener acreditava não ser possível concentrar directamente a atenção num elemento da emoção. Quando tentamos fazê-lo, a qualidade afectiva, a tristeza ou prazer, por exemplo, desaparece. Alguns processos sensoriais, particularmente a visão e o tacto, também possuem o atributo da extensão, pois se espalham pelo espaço. Todos os processos conscientes são redutíveis a uma dessas categorias. As descobertas da escola de Wiirzburg não levaram Titchener a mudar de posição. Ele reconheceu que qualidades obscuras e mal definidas podem ocorrer durante o pensamento, mas mantinha que elas ainda eram elementos sensoriais ou imaginais. Segundo Titchener, os sujeitos do laboratório de Külpe tinham cometido o erro de estímulo, pois tinham dado mais atenção ao objecto de estudo do que aos seus processos conscientes. Os alunos graduados de Titchener no laboratório de Comell realizaram um grande número de pesquisas sobre estados afectivos ou sentimentos, e suas descobertas levaram à rejeição da teoria tridimensional do sentimento, defendida por Wundt. Titchener sugeriu que o afecto só tinha uma das dimensões da teoria de Wundt, a do prazer-desprazer, negando as dimensões da tensão-relaxamento e da excitação-depressão. Perto do fmal da vida, Titchener começou a alterar seu sistema em muitos aspectos. Já em 1918, tinha desistido de falar do conceito de elementos mentais em suas aulas e começava a alegar que a psicologia deveria estudar não os elementos, mas as dimensões ou processos mais amplos da vida mental. Ele as denominava qualidade, intensidade, duração, nitidez e extensão . Sete anos mais tarde, escreveu para um pós-graduando: “Você deve desistir de pensar em termos de sensações e afectos. Isso era bom há dez anos; mas agora, como eu lhe disse, está completamente desactualizado. Você tem de aprender a pensar, antes, em termos de dimensões e não em termos de construtos sistemáticos como a sensação” (Evans, 1972, p. 174). Mesmo o termo psicologia estrutural deixara de ser adotado por Titchener no início dos anos 20, quando ele começou a falar de sua abordagem como psicologia existencial. Ele também reconsiderou a forma controlada de introspecção que praticara por tanto tempo e passou a defender uma abordagem mais aberta e fenomenológica. Essas são mudanças dramáticas e, se Titchener tivesse vivido o bastante para levá-las a efeito, teriam alterado radicalmente a fisionomia e o destino da psicologia estrutural. Elas sugerem também a flexibilidade e a abertura que os cientistas gostam de pensar que possuem, mas que nem todos podem demonstrar. As provas dessas mudanças foram reunidas a partir de um meticuloso exame das cartas e aulas de Titchener (Evans, 1972; Henle, 1974). Embora essas ideias nunca tivessem sido formalmente incorporadas ao sistema de Titchener, indicam uma direcção e um objectivo rumo aos quais ele seguia, mas que a morte o impediu de alcançar. Na descrição de sua psicologia estrutural, reproduzida a seguir, Titchener discute:  (1) a diferença entre a experiência que não depende da pessoa que passa pela experiência e a experiência que depende da pessoa, com exemplos de cada uma;  (2) a distinção entre processo mental, consciência e mente, e a relação entre a vida mental e o sistema nervoso;  (3) a natureza da introspecção que ele praticava, e sua relação com o tipo de introspecção ou observação usada em outras ciências;  e (4) o problema ou objectivo da psicologia estrutural e a semelhança entre a psicologia e as ciências naturais, incluindo as questões básicas “o quê”, “como” e “por quê”, que ele acreditava serem formuladas por todas as ciências. Todo conhecimento humano deriva da experiência humana; não há outra fonte de conhecimento. Mas a experiência humana, como vimos, pode ser considerada de diferentes pontos de vista. Suponha-se que tomamos dois pontos de vista, tão distintos quanto possível, e descobrimos por nós mesmos como se manifesta a experiência nos dois casos. Em primeiro lugar, vamos considerar a experiência como totalmente independente de qualquer pessoa em particular, supondo ainda que a experiência aconteça haja ou não alguém para passar por ela. Em segundo lugar, vamos considerar a experiência algo inteiramente dependente de uma pessoa específica, supondo ainda que a experiência só ocorre quando há alguém para passar por ela. É muito difícil encontrarmos perspectivas mais distintas entre si do que estas. Quais são as diferenças na experiência quando esta é considerada a partir de ambas as referências? Consideremos, de início, as três coisas que aprendemos em primeiro lugar na física: o espaço, o tempo e a massa. O espaço físico, que é o espaço da geometria, da astronomia e da geologia, é constante, sempre e em toda parte o mesmo. Sua unidade é 1 centímetro, e o centímetro tem precisamente o mesmo valor onde quer e quando quer que seja aplicado. O tempo físico também é constante, e sua unidade constante é 1 segundo. A massa física é constante; sua unidade, 1 grama, é sempre e em toda parte a mesma. Aqui temos a experiência do espaço, do tempo e da massa considerada independentemente da pessoa que os vivencia. Passemos, então, ao ponto de vista que leva em conta a pessoa que passa pela experiência. Você podes olhar no quadro da sua sala de aulas, existem 2 linhhas verticais  são fisicamente iguais;  têm a mesma medida em unidades de 1 centímetro;  para você, que as vê, elas não são iguais;  a hora que você passa na sala de espera da estação de um comboio  e a hora que você passa assistindo a um espetáculo divertido;  são fisicamente iguais;  têm a mesma medida em unidades de 1 segundo;  para você, a primeira hora passa lentamente e a outra, rapidamente;  elas não são iguais. Tome duas caixas circulares de papelão de diâmetros diferentes (digamos, de 2 cm e 8 cm) e ponha areia até que ambas pesem, digamos, 50 gramas. As duas massas são fisícamente iguais; colocadas nos pratos de uma balança, deixarão o fiel exactamente no centro. Para você, no momento em que as levantar com as duas mãos ou levantar uma por uma com a mesma mão, a caixa de diâmetro menor será consideravelmente mais pesada. Aqui temos a experiência do espaço, do tempo e da massa considerada como algo dependente da pessoa que a vivencia. É a mesma experiência que discutimos há pouco. Mas o nosso primeiro ponto de vista nos dá factos e leis da física, enquanto o segundo nos dá factos e leis da psicologia. Passemos agora a três outros tópicos discutidos nos manuais de física: o calor, o som e a luz. O calor propriamente dito, segundo os físicos, é a energia do movimento molecular; isto é, o calor é uma forma de energia decorrente de um movimento das partículas de um corpo entre si mesmas. O calor radiante pertence, assim como a luz, ao que é chamado energia radiante, a energia que se propaga por movimentos ondulatórios do éter luminífero, de que o espaço é preenchido. O som é uma forma de energia devida aos movimentos vibratórios de corpos, propagando-se através de movimentos ondulatórios de algum meio elástico, sólido, líquido ou gasoso. Em suma:  o calor é uma dança de moléculas;  a luz é um movimento ondulatório do éter;  o som é um movimento ondulatório do ar. O mundo da física, em que esses tipos de experiência são considerados independentes da pessoa que tem a experiência, não é quente nem frio, nem escuro nem luminoso, nem silencioso nem ruidoso. Só quando as experiências são consideradas dependentes de alguém, temos calor e frio, pretos e brancos, cores, cinzentos, tonalidades, silvos, assobios. E essas coisas são o objecto de estudo da psicologia, PROCESSO MENTAL, CONSCIÊNCIA E MENTE. O facto mais marcante do mundo da experiência humana é o facto da mudança. Nada é imóvel; tudo está em movimento. O sol um dia perderá o seu calor; as montanhas eternas estão, pouco a pouco, se desgastando e desaparecendo. Observemos o que observarmos, seja qual for o ponto de vista do qual o fazemos, encontramos processo, ocorrência; em nenhum lugar há permanência ou estabilidade. A humanidade, é verdade, tentou sustar esse fluxo e conferir estabilidade ao mundo da experiência supondo a existência de duas substâncias permanentes, a matéria e a mente; assim, as ocorrências do mundo físico são consideradas manifestações da matéria, e as ocorrências do mundo mental, manifestações da mente. Essa hipótese pode ter valor num certo estágio do pensamento humano; mas toda hipótese que não é adequada aos factos tem, cedo ou tarde, de ser abandonada. Por conseguinte, os físicos estão desistindo da hipótese de uma matéria substancial e imutável, e os psicólogos abandonam a hipótese de uma mente substancial e imutável. Os objectos estáveis e as coisas substanciais não pertencem ao mundo da ciência, física ou psicológica, mas apenas ao senso comum. Definimos a mente como a soma total da experiência humana, considerada como algo dependente da pessoa que passa por essa experiência. Dissemos, além disso, que a frase “pessoa que passa pela experiência” se refere ao corpo vivo, ao indivíduo organizado; e sugerimos que, para propósitos psicológicos, o corpo vivo pode ser reduzido ao sistema nervoso e às suas ligações. Logo, a mente se toma a soma total da experiência humana, considerada dependente de um sistema nervoso. E, como a experiência humana sempre é processo, ocorrência, e como o aspecto dependente da experiência humana é o seu aspecto mental, podemos dizer, de modo mais abreviado, que a mente é a soma total de processos mentais. Todas essas palavras são relevantes.  soma total” implica que estamos voltados para o mundo total da experiência, e não para uma parcela limitada dele; “mental” supõe que tratamos da experiência em seu aspecto dependente, condicionado por um sistema nervoso;  e “processos” implica que o nosso objecto de estudo é uma corrente, um fluxo perpétuo, em vez de uma coleção de objectos imutáveis. Não é fácil, mesmo com a maior boa vontade possível, passar do senso comum para a concepção científica da mente; a mudança não pode ocorrer de uma hora para outra. Devemos considerar a mente uma corrente de processos? Mas a mente é pessoal, minha mente; e minha personalidade continua ao longo da minha vida. A pessoa que passa pela experiência é apenas o organismo físico? Mas, outra vez, a experiência é pessoal, é a experiência de um eu permanente. A mente é espacial, tal como a matéria? Mas a mente é invisível, intangível; ela não está nem aqui nem ali, e nem é quadrada nem redonda. Só é possível responder a essas objeções depois de termos avançado no campo da psicologia e sermos capazes de ver de que maneira funciona a concepção científica da mente. Mesmo agora, contudo, elas se enfraquecem quando você as considera atentamente. Veja a questão da personalidade. Será que a sua vida é na verdade sempre pessoal? Não ocorre, às vezes, de você esquecer-se de si mesmo, perder a si mesmo, desconsiderar-se, negligenciar-se, contradizer-se, de um modo bem literal? A vida mental sem dúvida só é pessoal intermitentemente. E será a sua personalidade, quando realizada, imutável? Você é o mesmo eu na infância e na idade adulta, em seu trabalho e em sua diversão, quando se comporta da melhor maneira e quando se sente livre de restrições? Está claro que a experiência do eu é não apenas intermitente como composta, em ocasiões diferentes, de factores bem distintos. Quanto à outra questão, a mente é sem dúvida invisível, porque a visão é mente, e é intangível, porque o tacto é mente. A experiência da visão e a experiência do tacto dependem da pessoa que passa por elas. Mas o próprio senso comum dá testemunho, contra a sua própria crença, do facto de a mente ser espacial: falamos, e falamos corretamente, de uma ideia na nossa cabeça, de uma dor no pé. E se a idia for a de um círculo visto na imaginação, ela é redonda; e se é a ideia visual de um quadrado, é quadrada. A consciência, como mostra a consulta a qualquer dicionário, é um termo carregado de significados. Talvez baste aqui distinguir dois de seus usos principais. Em seu primeiro sentido, consciência significa a percepção pela mente dos seus próprios processos. Da mesma maneira como, do ponto de vista do senso comum, a mente é o eu interior que pensa, lembra, escolhe, raciocina, dirige os movimentos do corpo, assim também a consciência é o conhecimento íntimo desse pensamento e dessa direcção. Temos consciência da correcção da nossa resposta à pergunta de um exame, do carácter desajeitado dos nossos movimentos, da pureza dos nossos motivos. A consciência é, portanto, algo mais amplo do que a mente; ela é ‘a percepção daquilo que passa na própria mente do homem”; é “o conhecimento imediato que a mente tem de suas sensações e pensamentos”. No seu segundo sentido, a consciência é identificada com a mente, e “consciente”, com “mental”. Enquanto os processos mentais ocorrem, a consciência está presente; quando estão em suspenso, instala-se a inconsciência. “Dizer que tenho consciência de um sentimento é apenas dizer que o sinto. Ter um sentimento é estar consciente; e estar consciente é ter um sentimento. Ter consciência da picada do alfinete é apenas ter a sensação. E, embora eu tenha essas várias maneiras de expressar a minha sensação, dizendo ‘sinto a picada de um alfinete’, ‘sinto a dor de uma picada’, ‘tenho a sensação de um picada’, ‘sinto como urna picada’, e ‘tenho consciência de um sentimento’, a coisa que é expressada dessas várias maneiras é uma só e a mesma.” Temos de rejeitar a primeira dessas definições. Não só é desnecessário como enganoso falar da consciência como a percepção que a mente tem de si mesma. É desnecessário porque, como veremos adiante, essa percepção é uma questão de observação, do mesmo tipo geral que a observação do mundo exterior; é enganoso porque sugera que a mente é um ser pessoal, em lugar de um fluxo de processos. Deveremos portanto considerar que mente e consciência significam a mesma coisa. Entretanto, já que temos duas palavras diferentes, e é conveniente fazer alguma distinção entre elas, falaremos de mente quando nos referirmos à soma total de processos mentais que ocorrem no tempo de vida de uma pessoa, e falaremos de consciência quando nos referirmos à soma total de processos mentais que ocorrem agora, num dado tempo “presente”. A consciência será, então, uma secção, uma divisão, do fluxo mental. Essa distinção já está, na verdade, presente na linguagem comum: quando dizemos que um homem “perdeu a consciência”, queremos dizer que o lapso é temporário, que a vida mental logo será reatada; quando dizemos que um homem “perdeu o juízo [ mente]”, queremos dizer, não que a mente desapareceu de todo, mas com certeza que o desarranjo é permanente e crônico. Em conseqüência, embora o objecto de estudo da psicologia seja a mente, o objecto directo do estudo psicológico é sempre a consciência. Em temos estritos, jamais podemos observar a mesma consciência duas vezes; a correnteza mental flui, sem jamais retornar. Do ponto de vista prático, podemos observar uma consciência particular quantas vezes desejarmos, já que os processos mentais se agrupam da mesma maneira, revelam o mesmo padrão de organização, sempre que o organismo é posto nas mesmas circunstâncias. A preamar de ontem nunca vai se repetir, o mesmo ocorrendo com a consciência de ontem; mas temos tanto uma ciência da psicologia como uma ciência da oceanografia. O MÉTODO DA PSICOLOGIA O método científico pode ser resumido numa única palavra: “observação”. A única maneira de trabalhar em ciência é observando os fenómenos que compõem o objecto de estudo da ciência. E a observação envolve duas coisas: a atenção aos fenómenos e o seu registro; ou seja, a experiência clara e vivida e um relato da experiência em palavras ou fórmulas. Assim, o método da psicologia é a observação. Para distingui-la da observação da ciência física, que é a inspeção, um olhar para fora, a observação psicológica foi denominada introspecção, um olhar para dentro. Mas essa diferença de nome não nos deve deixar cegos para a semelhança essencial dos métodos. Vejamos alguns exemplos típicos. Podemos começar com dois casos bem simples.  (1) Suponha que lhe mostrem dois discos de papel: um é de um violeta uniforme, e o outro é composto em partes iguais de vermelho e azul.  Se esse segundo disco girar rapidamente, o vermelho e o azul vão se misturar, como dizemos, e você vai ver um certo azul avermelhado, ou seja, uma espécie de violeta.  O seu problema é ajustar as proporções de vermelho e azul no segundo disco de modo que o violeta resultante corresponda exatamente ao violeta do primeiro disco.  Você pode repetir essas observações quantas vezes quiser; pode isolar as observações trabalhando numa sala isenta de outras cores que possam interferir; pode variar as observações trabalhando para igualar os violetas,  primeiro a partir de um disco bicolor com um nítido excesso de azul e,  em seguida, com um disco claramente mais vermelho.  (2) Suponha também que é tocado o acorde dó-mi-sol e que lhe peçam para dizer quantos tons ele contém.  Você pode repetir essa observação; pode isolá-la, trabalhando numa sala silenciosa; pode variá-la, fazendo o acorde ser tocado em diferentes sectores da escala e em diferentes oitavas.  Está claro que, nesses casos, praticamente não há diferença entre introspecção e inspeção.  Usa-se o mesmo método que se empregaria para contar as oscilações de um pêndulo ou fazer leituras na escala de um galvanômetro, no laboratório de física.  Há uma diferença em termos de objecto de estudo:  as cores e os tons são experiências dependentes, e não independentes;  mas o método é essencialmente o mesmo. Examinemos agora alguns exemplos em que o material da introspecção é mais complexo.  (1) Suponha que lhe seja dita uma palavra e que lhe seja pedido que observe o efeito que esse estimulo produz na consciência;  como a palavra o afecta, que ideias evoca, etc.  A observação pode ser repetida; pode ser isolada — você pode estar sentado num quarto escuro e silencioso, livre de perturbações;  e pode ser variada — diferentes palavras podem ser proferidas, a palavra pode ser projectada numa tela em vez de falada, etc.  Aqui, contudo, parece haver uma diferença entre introspecção e inspeção. O observador que acompanha o curso de uma reacção química, ou os movimentos de alguma criatura microscópica, pode anotar de momento a momento as diferentes fases do fenómeno observado. Mas, se tentar relatar as mudanças na consciência ao mesmo tempo em que elas se desenrolam, você interfere na consciência; sua tradução da experiência mental em palavras introduz novos factores na experiência em si.  (2) Suponha ainda que você esta observando um sentimento ou uma emoção:  um sentimento de decepção ou irritação, uma emoção de raiva ou desgosto.  O controle experimental ainda é possível;  podem ser criadas no laboratório psicológico situações que permitam repetir, isolar e introduzir variações nesses sentimentos. Mas a observação que você faz deles interfere, de modo ainda mais sério que antes, no curso da consciência. O exame frio de uma emoção é fatal para a sua própria existência; a raiva desaparece, a decepção evapora, assim que você começa a examiná-las. Para vencer essa dificuldade do método introspectivo, os estudantes de psicologia em geral recebem a recomendação de retardar sua observação para depois de o processo a ser descrito ter consumado seu curso, quando eles então devem se recordar do processo e descrevê-lo de memória. Assim, a introspecção se torna retrospecção. Essa regra é sem dúvida boa para o iniciante, havendo casos em que mesmo o psicólogo experiente faz bem em segui-la. Mas ela de modo algum é universal. Pois temos de nos lembrar que as observações em questão podem ser repetidas. Não há, pois, razão para que o observador a quem a palavra é dita, ou em quem a emoção se instala, não deva relatar sua observação de imediato, no primeiro estágio de sua experiência, quando sente o efeito imediato da palavra, no começo do processo emotivo. É verdade que esse relato interrompe a observação. Mas, depois da descrição precisa do primeiro estágio, podem-se fazer outras observações, e o segundo, o terceiro e os outros estágios podem ser descritos da mesma maneira. Assim, acaba-se por obter um relato completo de toda a experiência. Há, teoricamente, algum perigo de os estágios sofrerem uma separação artificial;  a consciência é um fluxo, um processo, e, se o dividimos, corremos o risco de perder certos vínculos intermediários;  na prática, contudo, esse perigo mostrou ser muito pequeno;  além disso, sempre podemos recorrer à introspecção e comparar os nossos resultados parciais com a lembrança que temos da experiência inteira;  por outro lado, o observador experiente adquire o hábito de introspecção, tem a atitude introspectiva arraigada no seu sistema;  e assim consegue não apenas tornar notas mentais enquanto a observação está em andamento, sem interferir na consciência, como até rascunhar notas escritas, como o faz o histologista enquanto mantém o olho na ocular do microscópio;  em princípio, portanto, a introspecção é muito parecida com a inspeção.  os objectos observados são distintos;  são objectos da experiência da variavel dependente, e não da variavel independente;  têm a propensão de ser fugazes, passageiros, fugidios. Às vezes eles se recusam a ser observados enquanto acontecem, tende ser preservados na memória tal como um tecido delicado é preservado no fluido endurecedor antes de poder ser examinado. E o ponto de vista do observador é diferente; é a perspectiva da vida humana, do interesse humano, não do afastamento e da indiferença. Mas, de modo geral, o método da psicologia muito se assemelha ao da física. Não se deve esquecer que, embora o método das ciências física e psicológica seja substancialmente o mesmo, o objecto de estudo dessas ciências é o mais distinto possível. Em última análise, como vimos, o objecto de estudo de todas as ciências é o mundo da experiência humana; entretanto, também vimos que o aspecto da experiência tratado pela física é radicalmente diferente do tratado pela psicologia. A semelhança de método pode nos tentar a passar de um aspecto para o outro, como ocorre com um compêndio de física que contém um capitulo sobre a visão e a percepção da cor, ou com um manual de fisiologia que inclui parágrafos sobre ilusões de julgamento; mas essa confusão de objecto de estudo tem como resultado inevitável a confusão de pensamento. Como todas as ciências estão voltadas para o mesmo mundo da experiência humana, é natural que o método científico, seja qual for o aspecto da experiência a que é aplicado, seja em princípio o mesmo. Por outro lado, quando decidimos examinar algum aspecto particular da experiência, é necessário nos restringirmos a esse aspecto, sem mudar de ponto de vista à medida que a investigação se desenvolve. Por conseguinte, é uma grande vantagem contar com os dois termos, introspecção e inspeção, para denotar a observação feita a partir das diferentes perspectivas da psicologia e da física. O uso da palavra introspecção é um constante lembrete de que trabalhamos em psicologia, de que observamos o aspecto dependente do mundo da experiência. A observação, como dissemos antes, implica duas coisas: atenção aos fenómenos e registo dos fenómenos. A atenção deve ser mantida no mais alto grau possível de concentração; o registo deve ter precisão fotográfica. A observação é, portanto, tão difícil quanto cansativa; e a introspecção é, de modo geral, mais difícil e fatigante do que a inspeção. Para garantir resultados confiáveis, temos de ser rigorosamente imparciais e livres de preconceitos, vendo os factos tais como são, prontos a aceitá-los assim, sem tentar enquadrá-los em qualquer teoria preconcebida; e só devemos trabalhar quando a nossa disposição geral for favorável, quando estivermos bem e com boa saúde, à vontade no nosso ambiente, livres de preocupações e ansiedades exteriores. Se essas regras não forem seguidas, nenhum volume de experimentação nos ajudara. O observador, no laboratório de psicologia, está nas melhores condições exteriores possíveis; a sala onde trabalha está adaptada e equipada de tal maneira que a observação possa ser repetida, que o processo a ser observado possa destacar-se claramente contra o pano de fundo da consciência, e que os factores envolvidos no processo possam ser avaliados separadamente. Mas todo esse cuidado é em vão, excepto se o próprio observador, ao trabalhar, estiver com a mente equilibrada ao trabalho e plena atenção, e tiver capacidade de traduzir adequadamente sua experiência em palavras. Caros estudantes do Curso de Psicologia Escolar, qual é então o O PROBLEMA DA PSICOLOGIA? A ciência sempre busca responder a três perguntas acerca do seu objecto de estudo: o quê, como e por quê. O que precisamente, tirando-se todas as complicações e fazendo uma redução aos termos mais elementares, é esse objecto de estudo? Como, então, vem ele a se apresentar como se apresenta; como se combinam e organizam os seus elementos? E, finalmente, por que ele se apresenta agora nessa combinação ou arranjo particular, e não em outra? Se quisermos ter uma ciência, temos de responder a essas três perguntas. Responder à pergunta “o quê?” é a tarefa da análise. A ciência física, por exemplo, tenta, através da análise, reduzir o mundo da experiência independente aos seus termos mais elementares, chegando assim aos vários elementos químicos. Responder à pergunta “como?” é tarefa da síntese. A ciência fisica descreve o comportamento dos elementos em suas várias combinações e termina por formular as leis da natureza. Quando essas duas perguntas estão respondidas, temos uma descrição de fenómenos físicos. Mas a ciência pergunta, além disso, “por que” um dado conjunto de fenômenos ocorre justamente de uma determinada maneira e não de outra; e responde à pergunta “por quê?” revelando a causa de que os fenómenos observados são o efeito. Por exemplo, havia orvalho no solo ontem à noite porque a superfície da terra estava mais fria do que a camada de ar acima dela; o orvalho se forma sobre o vidro, e não sobre o metal, porque o poder irradiador de um é grande e o do outro é pequeno. Quando a causa de um fenómeno físico foi identificada assim, diz-se que o fenómeno está explicado. Até agora, no tocante à descrição, o problema da psicologia lembra de perto o da física. O psicólogo procura, antes de tudo, analisar a experiência mental em seus componentes mais simples. Ele toma uma consciência em particular e trabalha com ela repetidamente, fase por fase e processo por processo, até que a sua análise não possa mais ir adiante. Restam-lhe certos processos mentais que resistem à análise, elementos de natureza absolutamente simples que não podem ser reduzidos, mesmo em parte, a outros processos. Esse trabalho continua, com outras consciências, até que ele possa falar com uma certa confiança acerca da natureza e do número de processos mentais elementares. Em seguida, ele se ocupa da tarefa da síntese, a saber:  reúne os elementos em condições experimentais;  em primeiro lugar;  talvez, dois elementos do mesmo tipo, depois mais elementos desse tipo e, em seguida, processos elementares de diversos tipos;  ele acaba por discernir a regularidade e a uniformidade de ocorrência que vimos serem características de toda experiência humana. Assim, ele aprende a formular as leis de conexão dos processos mentais elementares. Se ocorrem juntas, sensações de som se combinam ou se fundem; se ocorrem lado a lado, sensações de cor se intensificam mutuamente; e tudo isso acontece de modo perfeitamente regular, permitindo-nos formular as leis da fusão tonal e as do contraste cromático. Se, no entanto, tentarmos elaborar uma psicologia meramente descritiva, vamos descobrir que não há esperança de ela ser uma verdadeira ciência da mente. Uma psicologia descritiva seria para a psicologia científica mais ou menos como as histórias naturais ultrapassadas diante dos modernos manuais de biologia, ou como a concepção de mundo que um rapaz consegue no seu gabinete de experimentos físicos diante da de um físico bem treinado. Ela nos diria muito sobre a mente e incluiria um grande corpo de factos observados que poderíamos classificar e, em larga medida, submeter a leis gerais. Contudo, não haveria nela unidade nem coerência; faltar-lhe-ia o princípio director que a biologia, por exemplo, tem na lei da evolução, ou a física, na lei da conservação de energia. Para dar à psicologia um cunho científico, não podemos nos limitar a descrever a mente; temos também de explicá-la. Temos que responder à pergunta “por quê?” Mas há uma dificuldade aqui. Está claro que não podemos considerar um processo mental a causa de outro processo mental, se não por outras razões, porque, com a mudança do nosso meio circundante, podem-se estabelecer consciências inteiramente novas. Quando visito Malawi ou África do Sul pela primeira vez, tenho experiências que se devem, não à consciência passada, mas aos estímulos presentes. Do mesmo modo, não podemos considerar os processos nervosos a causa de processos mentais. O princípio do paralelismo psicofísico estabelece que  os dois conjuntos de eventos, processos do sistema nervoso e processos mentais,  têm cursos paralelos, em correspondência exacta mas sem interferência:  eles são, em última análise, dois aspectos diferentes da mesma experiência.  um não pode ser a causa do outro. Não obstante, explicamos fenómenos mentais por referência ao corpo, ao sistema nervoso e aos órgãos que estão ligados a ele. O sistema nervoso não causa, mas explica, a mente. Ele a explica tal como o mapa de um país explica os vislumbres fragmentados de colinas, rios e cidades que captamos ao percorrê-lo. Em suma, a referência ao sistema nervoso introduz na psicologia precisamente a unidade e a coerência que uma psicologia restrita à descrição não consegue alcançar. A ciência física, portanto, explica ao atribuir uma causa; a ciência mental explica por referência aos processos nervosos que correspondem aos processos mentais sob observação. Podemos juntar essas duas modalidades de explicação se definirmos a própria explicação como a declaração das circunstâncias ou condições próximas sob as quais o fenômeno descrito ocorre. O orvalho se forma com a condição de uma diferença de temperatura entre o ar e o solo; Ao usar a frase “conexão dos processos mentais elementares”, Titchener revela a influência dos empiristas e associacionistas e de sua visão mecânica da associação. Segundo Wundt, os elementos são sintetizados ou organizados pelo poder activo da mente, e não conectados de uma forma passiva e mecânica. Se formam com a condição da ocorrência de certos processos no sistema nervoso. Fundamentalmente, o objecto e o modo de explicação são, nos dois casos, os mesmos. Assim como o método da psicologia é, em todos os pontos essenciais, o método das ciências naturais, o problema da psicologia é essencialmente da mesma espécie do problema da física. O psicólogo responde à pergunta “o quê?” analisando a experiência mental em seus elementos. Responde à pergunta “como?” formulando as leis de conexão desses elementos. E responde à pergunta “por quê?” explicando os processos mentais em termos dos seus processos paralelos no sistema nervoso. Seu programa não precisa ser desenvolvido nesta ordem; ele pode vislumbrar uma lei antes de completar a análise, e a descoberta de um órgão sensorial pode sugerir a ocorrência de determinados processos elementares antes de o psicólogo descobrir esses processos por meio da introspecção. Há um estreito vinculo entre essas três perguntas, e a resposta a qualquer uma ajuda a responder às outras duas. A medida do nosso progresso na psicologia cientifica está na nossa capacidade de dar respostas satisfatórias às três perguntas. O Destino do Estruturalismo As pessoas com frequência alcançam proeminência na história porque se opõem a alguma posição ou pensamento antigos. Mas, no caso de Titchener, a situação pode ser o contrário, pois ele se manteve firme quando todos pareciam contradizê-lo. O ideário da psicologia americana e europeia estava mudando na segunda década do século XX, mas isso não acontecia com o enunciado formal do sistema de Titchener. Alguns psicólogos chegaram a considerar o seu trabalho uma tentativa fútil de apegar-se a princípios e métodos antiquados. Titchener acreditava estar estabelecendo o padrão básico da psicologia, mas os seus esforços mostraram ser somente uma fase na história dessa ciência. A era do estruturalismo acabou quando ele morreu. O facto de ter se mantido por tanto tempo é um tributo efectivo à sua personalidade dominadora. Críticas ao Estruturalismo As críticas mais rigorosas ao estruturalismo foram dirigidas ao seu método: a introspecção. Essas críticas tinham muito mais relação com a introspecção praticada nos laboratórios de Titchener e de Kulpe, que estava voltada para relatos subjectivos dos elementos da consciência, do que com o método wundtiano de percepção interior, que estava voltado para respostas mais objectivas a estímulos externos. A introspecção, definida em termos amplos, vinha sendo usada há muito tempo, e os ataques ao método não eram novos.O filósofo alemão Irumanuel Kant escrevera, um século antes do trabalho de Titcherier, que toda tentativa de introspecção altera necessariamente a experiência consciente que estiver sendo estudada, porque introduz no conteúdo dessa experiência consciente um elemento de observação. O filósofo positivista Augusto Comte também dirigiu críticas ao método introspectivo. Várias décadas antes de Titchener propor a sua psicologia, Comte escreveu: A mente pode observar todos os fenômenos, excepto os seus próprios... O órgão observador e o órgão observado são idênticos, e a sua acção não pode ser pura e natural. Para observar, nosso intelecto deve fazer uma pausa em sua actividade; contudo, o que se quer observar é precisamente essa atividade. Se não se puder fazer essa pausa, não se pode observar; se se conseguir fazê-la, nada há a observar. Os resultados desses métodos são proporcionais ao seu caráter absurdo (Comte, 1830/1896, Vol. 1, p. 9). Outras criticas à introspecção foram feitas em 1867 pelo médico inglês Henry Maudsley, que escreveu amplamente sobre psicopatologia: Há pouca concordância entre os introspeccionistas. E, quando há, podemos atribuí-Ia ao facto de eles terem de ser meticulosamente treinados, tendo, pois, uma predisposição intrínseca no tocante às suas observações. Um corpo de conhecimento fundamentado na introspecção não pode ser indutivo; nenhuma descoberta pode ser feita por quem é treinado especificamente sobre o que observar. Devido ao alcance da patologia da mente, dificilinente se deve confiar num relato que a pessoa faz de si mesma. O conhecimento introspectivo não pode ter o carácter geral que esperamos da ciência. Ele tem de estar restrito à classe de refinados sujeitos adultos bem treinados. Grande parte do comportamento (hábito e desempenho) ocorre sem correlatos conscientes (Tumer, 1967, p. 11). Havia, pois, dúvidas substanciais acerca da introspecção antes de Titchener a ter aperfeiçoado e modificado para harmonizá-la com os requisitos do método experimental. As alterações por ele feitas não reduziram as críticas. À medida que o método foi se tornando mais específico, também os ataques se tomaram mais refinados. Uma das criticas refere-se à definição de introspecção. Ao que parece, Titchener teve dificuldade em defmir com o grau necessário de rigor, e sua tentativa foi relacioná-la com condições experimentais particulares. “O curso que um observador segue”, escreveu ele, ‘apresenta variações de detalhes de acordo com a natureza da consciência observada, com o propósito do experimento, com a instrução dada pelo experimentador. Introspecção é, portanto, um termo genérico que cobre um grupo indefinidamente amplo de procedimentos metodológicos específicos” (Titchener, 1912b, p. 485). Com tantas variações, é difícil encontrar semelhanças entre os usos que ele fazia do termo. Um ponto que mencionamos antes tem que ver com a questão de saber o que precisamente os introspeccionistas estruturalistas eram treinados para fazer. Os alunos graduados observadores de Titchener que aprendiam a fazer introspecção eram instruídos a ignorar certas classes de palavras (as chamadas palavras significativas) que eram parte fixa do seu vocabulário. A frase “vejo uma mesa”, por exemplo, não tem significado científico para um estruturalista; a palavra mesa é uma palavra significativa, baseada num conhecimento previamente estabelecido e geralmente aceito, acerca da combinação especifica de sensações que aprendemos a identificar e rotular como mesa. Logo, a observação “vejo uma mesa” nada dizia ao estruturalista sobre a experiência consciente do observador. O estruturalista não estava interessado no agregado de sensações resumido numa palavra significativa, mas nas formas elementares específicas da experiência. Observadores que diziam “mesa” estavam cometendo o erro de estímulo. Se essas palavras comuns fossem retiradas do vocabulário, como a experiência seria descrita? Teria de ser desenvolvida uma linguagem introspectiva. Como Titchener (e Wundt) acentuavam que as condições exteriores do experimento têm de ser cuidadosamente controladas para que a experiência consciente pudesse ser determinada com precisão, dois observadores deveriam ter experiências idênticas e conseguir resultados que se corroborassem mutuamente. Devido a essas experiências altamente semelhantes sob condições controladas, parecia teoricamente possível desenvolver um vocabulário operacional isento de palavras significativas. Afinal, é por causa dos elementos habituais nas experiências da vida cotidiana que podemos concordar com significados convencionais para palavras familiares. Embora o desenvolvimento de um tal vocabulário introspectivo em princípio possa ser possível, ele nunca foi feito. Havia frequentes desacordos entre os observadores, até mesmo nas condições experimentais mais rigidamente controladas. Introspeccionistas de diferentes laboratórios obtinham resultados diferentes. E muitas vezes havia desacordos entre sujeitos do mesmo laboratório. Titchener, no entanto, afirmava que o acordo terminaria por ser alcançado. Se tivesse havido suficiente acordo acerca de descobertas introspectivas, o estruturalismo poderia ter durado mais do que durou. Havia outras criticas à introspecção. Afirmava-se que a introspecção era, na realidade, retrospecção, visto passar algum tempo entre a experiência e o relato dela. Como o esquecimento, de acordo com a demonstração de Ebbinghaus, é mais rápido imediatamente depois de uma experiência, parecia provável que parte dela se perdesse antes de a introspecção ocorrer. A resposta estruturalista a essa acusação consistia em especificar que os observadores trabalham com breves intervalos de tempo, e postular a existência de uma imagem mental primária que, de acordo com suas alegações, mantinha a experiência para o observador até que ele pudesse relatá-la. Outra dificuldade que assinalamos é que o acto de examinar minuciosamente uma expe riência de modo introspectivo pode introduzir nela mudanças radicais. Pensemos na dificuldade de fazer a introspecção do estado consciente de raiva. No processo de dar-lhe atenção racional e de tentar dissecar essa experiência em seus componentes elementares, a raiva pode reduzir- se ou desaparecer. Titchener acreditava, entretanto, que introspeccionistas experimentados e bem treinados se tornavam, com a prática contínua, inconscientes de sua tarefa observacional. O método da introspecção não foi o único alvo de criticas. O movimento estruturalista foi acusado de artificialismo e de esterilidade por causa de sua tentativa de analisar processos conscientes até decompô-los em seus elementos. Alegavam os críticos que a totalidade de uma experiência não pode ser recuperada por nenhuma ligação ou associação de suas partes elementares. Para esses críticos, a experiência não ocorre em termos de sensações, imagens ou estados afectivos, mas em totalidades unificadas. Algo da experiência consciente é inevitavelmente perdida em qualquer esforço artificial de analisá-la. Veremos que a escola de psicologia da Gestalt fez um uso efectivo dessa crítica ao lançar seu novo movimento, sua revolta contra o estruturalismo. A defrnição estrita de psicologia adoptada pelos estruturalistas também foi atacada. O escopo da psicologia moderna se desenvolvia em algumas áreas que os estruturalistas preferiam excluir, por não serem elas coerentes com sua definição e seu método. Para Titchener, a psicologia animal e a psicologia infantil nada tinham de psicologia. Seu conceito do campo era demasiado limitado para abarcar todos os novos trabalhos realizados por um número rapidamente mais numeroso de psicólogos nos Estados Unidos. A psicologia estava ultrapassando Titchener, e com muita rapidez. Contribuições do Estruturalismo Titchener e os estruturalistas sem dúvida deram importantes contribuições à psicologia. Seu objecto de estudo — a experiência consciente — era claramente definido. Seus métodos de pesquisa seguiam a melhor tradição científica, envolvendo observação, experimentação e medição. Como a consciência era melhor percebida pela pessoa que tinha a experiência consciente, o melhor método de estudo desse objecto era a auto-observação. Embora o objecto de estudo e os objectivos dos estruturalistas estejam hoje ultrapassados, a introspecção — definida como um relato verbal baseado na vivência — ainda é usada em muitas áreas da psicologia. Pesquisadores no campo da psicofísica, por exemplo, pedem aos sujeitos que digam se um segundo som soa mais alto ou mais baixo do que o primeiro. Relatos verbais são feitos por pessoas que descrevem suas vivências enquanto permanecem em ambientes experimentais incomuns como cubiculos de privação sensorial. Relatos clínicos de pacientes e respostas a testes de personalidade e escalas de atitude também têm natureza introspectiva. Também é possível obter dos sujeitos experimentais relatos introspectivos envolvendo processos cognitivos como o raciocínio. Por exemplo, os psicólogos industriais/organizacionais dão importância aos relatos introspectivos dos funcionários sobre a maneira como interagem com terminais de computador, para o desenvolvimento e aperfeiçoamento desses equipamentos. Esses e outros casos envolvem relatos verbais baseados na experiência pessoal, e constituem formas legítimas de colecta de dados. Veremos mais tarde o que o movimento cognitivista em psicologia, com seu renovado interesse pelos processos conscientes, conferiu uma legitimidade ainda maior à introspecção. Outra contribuição do estruturalismo é essencialmente negativa: ter servido de alvo a críticas. O estruturalismo funcionou como forte referencial ortodoxo contra o qual os movimentos que começavam a surgir organizaram suas forças. Essas escolas de pensamento recém- nascidas deviam sua existência, numa escala não desprezível, à sua progressiva reformulação da posição estruturalista. Observamos que os avanços da ciência requerem algo a que se opor. Com a ajuda de Titchener e dos estruturalistas, caros estudantes do CURSO DE PSICOLOGIA ESCOLAR NO ISEDEF, a psicologia avançou bem além de suas fronteiras iniciais. O FUNCIONALISMO A Influência da Psicologia Animal sobre o Funcionalismo A psicologia funcional, como sugere o nome, interessa-se pela mente tal como esta funciona ou é usada na adaptação do organismo ao seu ambiente. O movimento funcionalista concentrou-se numa questão prática: o que os processos mentais realizam? Os funcionalistas estudavam a mente não do ponto de vista de sua composição (uma estrutura de elementos mentais), mas como um conglomerado de funções ou processos que levam a conseqUências práticas no mundo real. Os estudos da mente feitos por Wundt e Titchener nada revelavam das conseqüências ou resultados da atividade mental. Nem aspiravam a isso, pois essa meta utilitária não era compatível com sua abordagem da psicologia como ciência pura. O funcionalismo, na qualidade de primeiro sistema exclusivamente americano de psicologia, foi um protesto deliberado contra a psicologia de Wundt e o estruturalismo de Titchener, vistos como demasiado estreitos e restritos. Eles não conseguiam responder às perguntas que os funcionalistas faziam: O que a mente faz? Como ela o faz? O funcionalismo não foi um protesto contra os métodos e tópicos de pesquisa de Leipzig e CorneLL. De faCto, os funcionalistas adotaram muitas das descobertas desses laboratórios. Eles não faziam objeções à introspecção, nem se opunham ao estudo experimental da consciência. A sua oposição voltava-se para as definições anteriores de psicologia que descartavam toda consideração das funções utilitárias e práticas da mente, as actividades ou operações conscientes em andamento. Embora o funcionalismo fosse um protesto contra a escola de pensamento existente, seus proponentes não pretendiam tornar-se uma escola no sentido pleno da palavra. A razão principal para isso parece ter sido pessoal, e não ideológica. Nenhum dos defensores da posição funcionalista tinha a ambição de fundar e liderar um movimento formal. Com o tempo, o funcionalismo acabou por desenvolver muitas das características de uma escola de pensamento, mas isso não era o seu alvo. Seus líderes pareciam contentar-se em desafiar as posições de Wundt e de Titchener e ampliar as bases e o alcance da nova psicologia — e o fizeram com considerável sucesso. Eles modificaram a ortodoxia existente sem se empenhar em substituí-la. Em conseqüência, o funcionalismo nunca foi uma posição sistemática tão rígida ou formalmente diferenciada quanto o estruturalismo de Titchener. Por isso, não é possível descrevê-lo com tanta clareza e precisão quanto a este último. Não houve uma única psicologia funcional, como tinha havido uma única psicologia estrutural. Existiram várias psicologias funcionais que, embora diferindo entre si de algum modo, partilhavam o interesse pelas funções da consciência. E, devido a essa ênfase no funcionamento do organismo em seu ambiente, os funcionalistas interessaram-se pelas possíveis aplicações da psicologia. Assim, a psicologia aplicada desenvolveu-se rapidamente nos Estados Unidos, onde é hoje o mais importante legado do movimento funcionalista. Panorama do Funcionalismo O funcionalismo tem uma longa história, datando da metade da década de 1850. Seu desenvolvimento histórico, ao contrário do estruturalismo, foi promovido por líderes intelectuais com vários interesses e formações. Pode-se atribuir parcialmente a essa base diversificada o facto de o funcionalismo, ao contrário do estruturalismo, não ter estagnado nem declinado. Vamos fazer uma consideração das influências anteriores ao movimento da psicologia funcional, incluindo os trabalhos de Charles Darwin, de Francis Galton e dos primeiros estudiosos do comportamento animal. Embora essas primeiras fontes de influência sejam britânicas, o funcionalismo começou formalmente e floresceu nos Estados Unidos. É importante observar a época em que os precursores do funcionalismo desenvolviam as suas ideias — o periodo anterior e concomitante aos anos em que a nova psicologia progredia. On the Origin of Species (A Origem das Espécies) (1859), de Darwin, foi publicado um ano antes de Elementos de Psicofísica (1860), de Fechner, e vinte anos antes de Wundt estabelecer seu laboratório em Leipzig. Galton começou a trabalhar nas diferenças individuais em 1869, antes de Wundt escrever seus Princípios de Psicologia Fisiológica (1873-1874). Experiinentos sobre psicologia animal foram feitos na década de 1880, antes de Titchener ter ido à Alemanha e ser influenciado por Wundt. Dessa maneira, importantes trabalhos sobre as funções da consciência, as diferenças individuais e o comportamento animal estavam sendo feitos no momento em que Wundt e Titchener estavam excluindo essas áreas do domínio da psicologia. Coube aos novos psicólogos americanos, com seu temperamento diferente, atribuir à função, às diferenças individuais e ao rato branco um novo destaque na psicologia. A actual psicologia americana é funcionalista tanto em termos de orientação como de atitude. Evidencia-o a ênfase nos testes, na aprendizagem, na percepção e em outros processos funcionais que ajudam a nossa adaptação e o nosso ajustamento ao ambiente. A Revolução da Evolução Charles Darwin (1809-1 882) On the Origiri of Species by Means of Natural Selection (A Origem das Espésies por meio da Seleção Natural), de Charles Darwin, publicado em 1859, é um dos mais importantes livros da história da civilização ocidental. A teoria da evolução nele apresentada libertou os cientistas de tradições e superstições até então inibidoras, tendo-os lançado na era da maturidade e da respeitabilidade das ciências da vida. A teoria da evolução também teria um tremendo impacto na psicologia americana contemporânea, que deve sua forma e substância tanto à influência da obra de Darwin como a qualquer outra ideia ou individuo. Além disso, a teoria evolutiva exerceu, como veremos uma grande influência sobre a obra de Sigmund Freud. A sugestão de que os seres vivos mudam com o tempo, que é a noção fundamental da evolução, não teve origem em Darwin. Embora antecipações intelectuais dessa ideia geral remontem ao século V a.C., só no final do século XVIII a teoria foi investigada sistematicamente. Erasmus Darwin o avô de Charles Darwin e Francis Galton) defendia a crença de que todos os animais de sangue quente tinham evoluído a partir de um mesmo filamento vivo, animado por Deus. Em 1809, o naturalista francês Jean Baptiste Lamarck formulou uma teoria comportamental da evolução que acentuava a modificação da forma corporal de um animal através dos seus esforços de adaptação ao ambiente; essas modificações, sugeriu Lamarck, eram herdadas pelas gerações seguintes. De acordo com essa teoria, para dar um exemplo, a girafa desenvolveu o seu longo pescoço no decorrer de gerações, por ter tido de alcançar ramos cada vez mais altos para encontrar comida. Em meados da década de 1800, o geólogo britânico Charles Lyell introduziu a noção de evolução na teoria geológica, afirmando que a Terra tinha passado por vários estágios de desenvolvimento até alcançar sua atual estrutura. Por que, passados tantos séculos de aceitação do relato bíblico da criação, os cientistas foram impelidos a buscar uma explicação alternativa? Uma das razões é que aumentavam os conhecimentos sobre as outras espécies que habitam a Terra. Os pesquisadores descobriam e estudavam curiosos tipos de vida animal existentes em vários continentes. Era inevitável, portanto, que alguns pensadores começassem a perguntar como Noé poderia ter posto um par de cada um desses animais na arca. Havia simplesmente um número grande demais de espécies para que se continuasse a crer na história bíblica. Exploradores e cientistas tinham encontrado fósseis e ossos de criaturas não condizentes com os de espécies existentes — ossos que aparentemente pertenciam a animais que um dia percorreram a Terra e desapareceram. Por conseguinte, deixara de ser possível considerar as formas vivas como constantes e imutáveis desde o começo dos tempos; elas estavam sujeitas a modificação. Antigas espécies foram extintas e novas apareceram, sendo algumas alterações de formas existentes. Talvez, especularam alguns cientistas, toda a natureza derive da mudança e ainda esteja em processo de evolução. O impacto da mudança contínua estava sendo observado tanto no domínio intelectual e científico como na vida cotidiana. A sociedade estava sendo transformada pelas forças da Revolução Industrial. Valores, relações sociais e normas culturais que tinham sido constantes durante gerações estavam sendo destroçadas com a migração de numerosos contingentes vindos das áreas rurais e cidadezinhas para os gigantescos centros urbanos fabris. Sobretudo, havia a crescente influência da ciência. As pessoas contentavam-se menos em fundamentar seu conhecimento da natureza humana e da sociedade naquilo que a Bíblia e as autoridades antigas afirmavam ser verdadeiro. Elas estavam prontas para depositar sua fé na ciência. Mudança era o ideal da época. Ela afetou o lavrador, cuja vida passara a pulsar segundo o ritmo da máquina, e não mais das estações, assim como o cientista, que agora passava o tempo desvendando os segredos de um conjunto de ossos recém-descobertos. O clima social e intelectual tornava cientificamente respeitável a ideia de uma teoria evolutiva. Houve muita especulação e teorização, mas, por muito tempo, foram poucas as provas capazes de sustentá-las. Então, A Origem das Espécies forneceu tantos dados bem organiza dos que a ideia de evolução não pôde mais ser ignorada. A época exigia essa teoria, e Charles Darwin tornou-se o seu veículo. A Vida de Darwin Quando menino Charles Darwin dava poucas indicações de vir a ser o arguto e zeloso cientista que o mundo iria conhecer. Na verdade, esperava-se que ele não fosse senão um ocioso cavalheiro, preocupado apenas com os esportes. Em seus primeiros anos de vida, mostrou-se tão pouco promissor que o seu pai, um médico abastado, chegou a se preocupar em ver o jovem Charles ser a desgraça da família. Embora nunca tivesse gostado da escola nem ido bem nos estudos, Charles cedo mostrou interesse pela história natural e por colecionar moedas, conchas e minerais. Enviado pelo pai à Universidade de Edimburgo para estudar medicina, ele a achou maçante. Percebendo que Charles ia mal, o pai decidiu que o jovem deveria tornar-se clérigo. Darwin passou três anos na Universidade de Cambridge, e descreveu a experiência como tempo perdido, ao menos do ponto de vista acadêmico. Em termos sociais, foi uma época maravilhosa, que ele considerou o período mais feliz de sua vida. Colecionava moedas, caçava e passava boa parte do tempo bebendo, cantando e jogando cartas com um grupo de colegas que ele mesmo considerava dissipados e pouco dotados intelectualmente. Um dos seus instrutores, o destacado botânico John Stevens Henslow, promoveu a nomeação de Darwin como naturalista a bordo do navio H.M.S. Beagle, que o governo britânico preparava para uma viagem científica ao redor do mundo. Essa famosa excursão, que durou de 1831 a 1836, começou em águas sul-americanas, rumou para o Taiti e a Nova Zelândia e voltou para a Inglaterra pela Ilha de Ascensão e pelos Açores. A viagem deu a Darwin a oportunidade ímpar de observar uma imensa variedade de plantas e formas de vida animal, e ele coletou uma vasta quantidade de dados. Essa jornada modificou o caráter de Darwin. Deixando a vida de diletante e amante dos prazeres, voltou à Inglaterra como um cientista sério e dedicado, com uma paixão e um objectivo na vida — promulgar sua teoria da evolução. Em 1839, Darwin se casou; três anos mais tarde, mudou-se com a esposa para Down, uma cidadezinha a cerca de vinte e cinco quilômetros de Londres, para poder concentrar-se em sua obra sem as distrações da vida da cidade. Sempre mal de saúde, continuou a ser acometido por problemas físicos, queixando-se de vômitos, flatulência, furúnculos, eczema, vertigens, tremores e ataques de depressão. Ao que parece, os sintomas eram neuróticos, provocados por qualquer mudança em sua rotina diária. Sempre que o mundo exterior se fazia presente, impedindo-o de trabalhar, ele tinha um ataque. A enfermidade tornou-se um recurso útil, protegendo-o das questões da vida diária e propiciando-lhe a solidão e a concentração de que precisava para criar sua teoria. Um escritor denominou o problema de saúde de Darwin uma “doença criativa” (Pickering, 1974). 126 A teoria da evolução proposta por Charles Darwin criou condições para o surgimento da psicologia funcional, que estudava o papel adaptativo da consciência em vez do seu conteúdo. Desde a época do seu retorno com o Beagle, Darwin estava convencido da validade da teoria da evolução das espécies. Por que, então, esperou vinte e dois anos antes de apresentar sua obra ao mundo? A resposta parece estar em sua atitude extremamente conservadora, um requisito de temperamento para um bom cientista. Darwin sabia que sua teoria era revolucionária e desejava ter certeza de que, quando ele a publicasse, ela tivesse provas suficientes em seu apoio. Por isso, agiu com meticulosa cautela. Só em 1842 Darwin sentiu-se preparado para escrever um breve sumário de trinta e cinco páginas sobre o desenvolvimento de sua teoria. Dois anos mais tarde, ele o expandiu, redigindo um ensaio de duzentas páginas, mas ainda não estava satisfeito. Continuou a conservar suas ideias para si, partilhando-as apenas com Charles Lyell e com o botânico Joseph Hooker. Por mais quinze anos ele continuou a trabalhar com os seus dados, conferindo, elaborando, revisando, para ter certeza de que, quando finalmente a publicasse, a teoria fosse inatacável. Ninguém sabe quanto tempo mais Darwin teria demorado se não tivesse recebido, em junho de 1858, uma carta esmagadora de um certo Alfred Russel Wallace, um jovem naturalista. Este, enquanto convalescia de uma doença nas Índias Orientais, fizera o esboço de uma teoria da evolução espantosamente semelhante à de Darwin, embora não apoiada no volume de dados que Darwin acumulara. Wallace dizia que fizera o trabalho em três dias! Em sua carta, pedia a opinião de Darwin sobre a sua teoria e a sua ajuda para conseguir publicá-la. Podemos imaginar o que Darwin sentiu diante disso, depois de mais de duas décadas de um trabalho penoso e cansativo. Darwin tinha outra característica que não é incomum entre cientistas: ambição pessoal. Mesmo antes de sua viagem no Besgle, ele escrevera em seu diário que tinha a “ambição de ocupar um lugar justo entre os homens de ciência”. E também escrevera: “Eu gostaria de atribuir menos valor a essa insignificância que é a fama” e “Destesto a ideia de escrever para conseguir a prioridade, mas por certo ficaria aflito se alguém publicasse as minhas doutrinas antes de mim” (Merton, 1957, pp. 647-648). Com invejável honestidade, contudo, Darwin reflectiu sobre a carta de Wallace e decidiu: “Parece-me difícil ter de perder a prioridade depois de tantos anos, mas não posso ter a certeza de que isso altere a justiça do caso... Seria uma desonra para mim publicar agora” (Merton, 1957, p. 648). Os amigos de Darwin, Lyell e Hooker, sugeriram que ele lesse o trabalho de Wallace e partes do seu próprio livro a ser publicado numa reunião de Linnean Society em 1 de julho de 1858. O resto é história. Todos os 1.250 exemplares da primeira edição de A Origem das Espécies foram vendidos no dia da publicação. O livro gerou uma comoção e uma controvérsia imediatas, e Darwin, embora sujeito a muitos insultos e críticas, conseguiu a “insignificância que é a fama”. As Obras de Darwin A teoria darwinista da evolução é tão conhecida que damos aqui apenas um apanhado de seus pontos fundamentais. Partindo do facto óbvio da variação entre membros individuais de uma espécie, Darwin raciocinou que essa variabilidade espontânea é transmissível por herança. Na natureza, um processo de seleção natural resulta na sobrevivência dos organismos mais bem preparados para o seu ambiente e na eliminação dos que não se ajustam. Ocorre uma continua luta pela sobrevivência, escreveu Darwin, e as formas que sobrevivem são as que fizeram adaptações ou ajustes bem-sucedidos às circunstâncias ambientais a que estão expostas. Espécies que não podem adaptar-se não sobrevivem. Darwin formulou a ideia de uma luta pela sobrevivência depois de ler o Essay on the Principie of Popuiation (Ensaio sobre o Princípio da População), escrito pelo economista Thomas Malthus em 1789. Malthus observara que o suprimento de alimentos do mundo aumenta aritmeticamente, enquanto a população humana tende a crescer geometricamente. O resultado inevitável, que Malthus descreve como de “matiz melancólico”, é que muitos seres humanos viverão em condições próximas da inanição. Só os mais vigorosos e espertos sobreviverão. Darwin estendeu esse principio a todos os organismos vivos e desenvolveu o conceito de seleção natural. As formas orgânicas que sobrevivem à luta e alcançam a maturidade tendem a transmitir à sua prole as habilidades ou vantagens que lhes permitiram vencer. Além disso, como a variação é outra lei geral da hereditariedade, os descendentes mostrarão variações entre si; alguns vão possuir as qualidades vantajosas desenvolvidas num grau superior ao dos pais. Essas qualidades tendem a se manter e, no curso de muitas gerações, podem ocorrer grandes mudanças de forma. Essas mudanças podem ser tão arnplas que explicam as diferenças entre espécies hoje existentes. A seleção natural não foi o único mecanismo da evolução que Darwin reconheceu. Ele também acreditava na doutrina lamarckiana de que as mudanças de forma produzidas pela experiência no decorrer da vida de um animal podem ser transmitidas a gerações subsequentes. Embora muitos clérigos fossem receptivos à ideia da teoria evolutiva, outros a viram como uma ameaça porque acreditavam ser ela incompatível com uma interpretação literal do relato bíblico da criação. Um eminente ministro denominou-a ‘uma tentativa de destronar Deus”, acrescentando que: ‘Se a teoria darwinista for verdadeira, o Gânesis é uma mentira... e a revelação de Deus ao homem, tal como nós, cristãos, a conhecemos, é uma ilusão” (White, 1896/1965, p. 93). A controvérsia foi intensa e duradoura. Menos de um ano depois da publicação de A Origem das Espécies, realizou-se um debate na Universidade de Oxford num encontro da Sociedade Britânica para o Progresso da Ciência. Os debatedores eram o biólogo Thomas Henry Huxley, que defendia Darwin e a evolução, e o Bispo Samuel Wilberforce, advogado do livro do Gêriesis. “Referindo-se às ideias de Darwin, [ deu graças... por não ser descendente de um macaco. A réplica foi dada por Huxley: ‘Se tivesse de escolher, eu preferiria ser descendente de um humilde macaco a sê- lo de um homem que emprega o seu conhecimento e a sua eloquência para dar uma imagem errônea dos que consomem a vida na busca da verdade’ “ (White, 1896/1965, p. 92). Durante o debate, um homem começou a andar pelo salão carregando uma Bíblia acima da cabeça. “O livro, o livro”, exclamava ele. Era Robert Fitzroy, capitão do Beagle durante a viagem de Darwin. Fundamentalista na sua opção religiosa, Fitzroy culpava-se pela sua participação no desenvolvimento da teoria da evolução. Cinco anos depois, ele se suicidou (Gould, 1976, p. 34). Dados recém-descobertos levaram a uma reavaliação da história desse famoso confronto (Richards, 1987). Ao que parece, o relato do debate em Oxford vem da atitude anticlerical de Huxley e de sua tentativa (talvez inconsciente) de promover sua condição científica. Na verdade, foi menos um debate do que uma série de palestras. O Capitão Fitzroy apenas teve sua oportunidade de falar, e foi Joseph Hooker, e não Huxley, que fez a réplica mais eficaz a Wilberfotce. Darwin manteve as boas relações com este último; ele considerou as observações do bispo “incomumente argutas; elas não têm valor científico algum, mas ele me ataca num estilo esplêndido” (Gould, 1986, p. 31). A batalha não tinha acabado. Em 1925, no famoso Caso Scopes do “julgamento do macaco”, realizado em Dayton, Tennessee, um professor secundário, John T. Scopes, foi processado por ensinar a teoria da evolução. Quase meio século depois, em 1972, um clérigo do Tennessee afirmou que a teoria de Darwin “promove a corrupção, a luxúria, a imoralidade, a ambição e actos de depravação criminosa como o vício das drogas, a guerra e actos atrozes de genocídio” (New York Tiznes, 1 de outubro de 1972). A Suprema Corte norte-americana deitou por terra em 1968 a lei que proibia o ensino da evolução nas escolas públicas, mas uma pesquisa de 1985 revelou, que em nível nacional, metade dos adultos americanos rejeitava a teoria da evolução (Washington Post, 3 de junho de 1986). Em 1987, a Suprema Corte derrubou uma emenda do Estado da Louisiana que exigia que, se a evolução fosse ensinada nas escolas públicas, a “ciência da criação”, a concepção bíblica da origem das espécies, teria de merecer igual tempo. E, em 1990, a junta estadual de educação do Texas aprovou manuais científicos que tratavam da teoria da evolução, mas um terço dos seus membros fez objeção. Darwin permaneceu distante das disputas de sua época e escreveu outros livros importantes para a psicologia. Seu segundo grande relatório sobre a evolução, The Descent of Man (A Ascendência do Homem), de 1871, reunia provas da evolução humana a partir de formas inferiores de vida, destacando a semelhança entre os processos mentais humanos e animais. O livro alcançou rápida popularidade. Um colunista de uma importante revista, a Edinburgh Review, disse: “Na sala de estar, ele está competindo com o último romance, e, no estúdio, está perturbando tanto o homem de ciência como o moralista e o teólogo. Por toda a parte, ele levanta uma tempestade mista de ira, assombro e admiração” (Richards, 1987, p. 219). O assombro, a admiração e a aceitação logo venceram. Darwin fez um abrangente estudo das expressões emocionais nos homens e nos animais, sugerindo que as mudanças de gestos e posturas que caracterizam as principais emoções podiam ser interpretadas em termos evolutivos. Em seu livro The Expression of the Emotions Man and Animais (A Expressão das Emoções no Homem e nos Animais), de 1872, ele alegou que as expressões emocionais são remanescentes de movimentos que um dia serviram a alguma função prática. A partir de 1840, Darwin manteve um diário sobre o seu filho bebê, registando o seu desenvolvimento. Ele publicou suas anotações na revista Mmd, em 1877, com o título de ‘Esboço Biográfico de um Bebê”. Esse artigo é considerado uma das primeiras fontes da moderna psicologia infantil. A importância dos factores mentais na evolução das espécies era patente na teoria de Darwin, e ele citava com frequência reações conscientes nos homens e nos animais. Devido ao papel atribuído à consciência na teoria evolutiva, a psicologia foi levada a aceitar o ponto de vista da evolução. A Influência de Darwin sobre a Psicologia A obra de Darwin no final do século XIX foi uma importante força plasmadora da psicologia moderna. A teoria da evolução fez surgir a estimulante possibilidade de uma continuidade no funcionamento mental entre os homens e os animais inferiores. Embora amplamente anatómicas, as provas sugeriam com vigor haver continuidades no desenvolvimento do comportamento e dos processos mentais. Se a mente humana tinha evoluído a partir de mentes mais primitivas, existiriam semelhanças no funcionamento mental dos homens e dos animais. A separação entre animais e homens proposta dois séculos antes por Descartes estava assim exposta a um sério questionamento, e o estudo do comportamento animal podia agora ser considerado vital para uma compreensão do comportamento humano. Os cientistas voltaram-se para a pesquisa do funcionamento mental animal, introduzindo um novo objecto no laboratório de psicologia. Esse novo campo da psicologia animal iria ter amplas implicações. A teoria evolutiva também provocou uma mudança no objecto de estudo e no objectivo da psicologia. O foco dos estruturalistas era a análise do conteúdo consciente. A obra de Darwin inspirou alguns psicólogos, em especial norte-americanos, a levar em conta as possíveis funções da consciência. Isso parecia a muitos investigadores mais importante do que a determinação dos elementos da consciência. Assim, à medida que a psicologia ia se voltando mais e mais para o modo de funcionamento do organismo em sua adaptação ao ambiente, a pesquisa detalhada de elementos mentais começava a perder o seu atractivo. A teoria de Darwin também influenciou a psicologia ao ampliar a metodologia que a nova ciência podia legitimamente usar. Os métodos empregados no laboratório de Wundt em Leipzig derivavam primariamente da fisiologia, em especial dos métodos psicofísicos de Fechner. Os métodos de Darwin, que produziam resultados aplicáveis tanto ao homem como aos animais, em nada se pareciam com técnicas de base fisiológica. Seus dados advinham de uma variedade de fontes, incluindo a geologia, a arqueologia, a demografia, observações de animais selvagens e domésticos, e pesquisas sobre a criação de animais. A sua teoria era apoiada por informações vindas de todos esses campos. Ali estavam provas tangíveis e impressionantes de que os cientistas poderiam estudar a natureza humana com outras técnicas além da introspecção experimental. Seguindo o exemplo de Darwin, os psicólogos que tinham sido influenciados pela teoria da evolução e por sua ênfase nas funções da consciência tornaram-se mais ecléticos no tocante a métodos de pesquisa. Como resultado, ampliaram-se os tipos de dados reunidos pelos psicólogos. Outro efeito da teoria da evolução na psicologia foi o foco mais insistente nas diferenças individuais. O facto da variação entre membros da mesma espécie era evidente para Darwin em consequência de sua observação, durante a viagem no Beagle, de inúmeras espécies e formas. A evolução não poderia ocorrer se toda geração fosse idêntica à dos seus pais. Portanto, a variação era um importante pilar da teoria evolutiva. Enquanto os psicólogos estruturais continuavam a buscar leis gerais que abrangessem todas as mentes, os psicólogos influenciados pelas ideias de Darwin começaram a procurar os modos pelos quais as mentes individuais diferiam, e técnicas para medir essas diferenças. A psicologia dos estruturalistas tinha pouco espaço para a consideração da mente dos animais ou das diferenças individuais. Cabia aos cientistas de tendência funcionalista a exploração desses problemas. Como resultado, a forma e a natureza da nova psicologia começaram a mudar. As Diferenças Individuais: Francis Galton (1822-1911). Galton aplicou efectivamente o espírito da evolução à psicologia com o seu trabalho sobre os problemas da herança mental e das diferenças individuais na capacidade humana. Antes dos esforços de Galton, o fenómeno das diferenças individuais não tinha sido considerado um objecto de estudo necessário na psicologia, o que era uma série de omissão. Só umas poucas tentativas isoladas tinham sido feitas, principalmente por Weber, Fechner e Helmholtz, que tinham relatado diferenças individuais em seus resultados experimentais, mas não as tinham investigado de modo sistemático. Wundt e Titchener, por sua vez, não as consideravam parte da psicologia. Francis Galton era dotado de uma inteligência extraordinária (um QI estimado de 200) e de grande profusão de ideias novas. Sua curiosidade criativa e seu génio o fizeram tratar de uma variedade de problemas, cujos detalhes ele deixava para os outros preencherem. Entre as áreas que investigou, estão as impressões digitais (que a força policial logo adoptou para fins de identificação), a moda, a distribuição geográfica de beleza, o levantamento de peso e a eficácia da oração. Para esse homem versátil e inventivo, pouca coisa era desprovida de interesse. Nascido em 1822 perto de Birmingham, Inglaterra, era o mais novo de nove filhos, Seu pai era um próspero banqueiro cuja familia rica e socialmente proeminente incluía pessoas importantes nas principais esferas de influência: o governo, a Igreja e a corporação militar. Desde cedo, Galton tinha familiaridade com pessoas influentes devido às ligações de sua família. Aos dezesseis anos, por insistência do pai, Galton começou a estudar medicina como aluno tutelado do Hospital Geral de Birmingham. Foi aprendiz dos médicos, receitou pílulas. A evolução deixou sua primeira marca na psicologia através do trabalho de Francis Galton sobre a herança mental e as diferenças individuais. Estudou compândios de medicina, gessou fracturas, amputou dedos, extraiu dentes, vacinou crianças e ainda conseguiu se divertir lendo os clássicos, principalmente Horácio e Homero. De modo geral, essa não era uma experiência agradável, e ele só permaneceu ali devido à continua pressão do pai. Um incidente ocorrido durante seu aprendizado médico ilustra sua incansável curiosidade. Desejando saber por si mesmo os efeitos dos vários medicamentos da farmácia, Galton começou a tomar pequenas doses de cada um, principiando, de modo sistemático, com os classificados na letra “A”. Esse empreendimento científico terminou na letra “C”, quando ele tomou uma dose de óleo de cróton, um forte laxante. Depois de um ano no hospital, Galton continuou sua educação médica no King’s Coliege, de Londres. Um ano depois mudou de planos e matriculou-se no Trinity Coilege, da Universidade de Cambridge, onde, com um busto de Isaac Newton diante de sua lareira, deu asas ao seu interesse pela matemática. Embora o seu trabalho tenha sido interrompido por um severo colapso mental, ele conseguiu graduar-se. Voltou a estudar medicina, o que agora muito o desagradava, mas a morte do pai o libertou dessa profissão. As viagens e as explorações chamaram a atenção de Galton. Ele foi ao Sudão em 1845 e ao Sudoeste Africano em 1850, ano em que inventou um teletipo. Publicou relatos de suas viagens e recebeu uma medalha da Sociedade Geográfica Real. Na década de 1850, parou de viajar, por causa do casamento e da saúde frágil, disse ele, mas conservou seu interesse pelas explorações e escreveu um guia chamado The Art of Travei (A Arte de Viajar). Organizou expedições para outros exploradores e fez palestras sobre a vida no acampamento para solda dos treinados para a Guerra da Criméia. Seu espírito irrequieto o levou à meteorologia e a projetar instrumentos de registo de dados do tempo. Resumiu suas descobertas num livro considerado a primeira tentativa de mapeamento extenso de padrões do tempo. Quando seu primo Charles Darwin publicou A Origem das Espécies, Galton voltou imediatamente sua atenção para a nova teoria. De início, o aspecto biológico da evolução o cativou, e ele fez uma pesquisa sobre os efeitos das transfusões de sangue entre coelhos para determinar se as características adquiridas podiam ser herdadas. Embora o aspecto genético da teoria não o interessasse por muito tempo, suas implicações sociais orientaram o trabalho subsequente de Galton e determinaram sua influência sobre a psicologia moderna. A Herança Mental O primeiro livro de Galton que teve importância para a psícología foi Hereditary Genius (Gênio Hereditário), publicado em 1869. Nele, Galton procurou demonstrar que a grandeza individual ou gênio ocorria com uma frequência demasiado grande no interior de famílias para ser explicada por influências arnbientais. Sua tese é, em resumo, que homens eminentes têm filhos eminentes. Em sua maior parte, os estudos biográficos relatados no livro eram pesquisas sobre a ancestralidade de pessoas importantes como cientistas e médicos. Seus dados revelaram que toda pessoa famosa herdava não apenas o gênio como uma forma específica de genialidade. Por exemplo, um grande cientista nascia numa família que alcançara proeminência na ciência. O objetivo último de Galton era encorajar o nascimento de indivíduos mais eminentes ou capazes e desencorajar o nascimento dos incapazes. Para ajudar a atingir essa meta, ele fundou a ciência da eugenia (a ciência que trata dos factores capazes de aprimorar as qualidades hereditárias da raça humana), afirmando que os seres humanos, assim como os animais, podiam ser aperfeiçoados por seleção artificial. Ele acreditava que, se homens e mulheres de talento considerável fossem selecionados e acasalados por sucessivas gerações, seria produzida uma raça de pessoas altamente dotadas. Propunha Galton que se desenvolvessem testes de inteligência a ser usados na escolha dos homens e mulheres mais brilhantes para o acasalamen to selectivo, recomendando que quem alcançasse os níveis mais altos nos testes devia receber incentivos financeiros para se casar e ter filhos. É interessante o facto de Galton, que fundou a eugenia e acreditava que só as pessoas muito inteligentes deviam se reproduzir, não ter tido filhos. Ao que parece, o problema era genético; nenhum dos seus irmãos os teve. Ao tentar verificar sua tese eugênica, Galton envolveu-se em problemas de medida e estatística. Em Gênio Hereditário, ele aplicara conceitos estatísticos aos problemas da hereditariedade e classificara os homens célebres da sua amostra em categorias, segundo a freqüência com que o seu nível de aptidão ocorria na população. Ele descobriu que homens eminentes têm maior probabilidade de gerar filhos eminentes do que os homens comuns. Sua amostra consistia em 977 homens famosos, cada um deles tão notável que a proporção era de 1 para 4.000. Aleatoriamente, esperava-se que o grupo tivesse apenas um genitor proeminente; em vez disso, havia 332. A probabilidade de eminência em certas famílias era elevada, mas não o suficiente para que Galton considerasse seriamente alguma possível influência de um ambiente superior, de educação ou de oportunidades, oferecidos aos filhos das famílias notáveis por ele estudadas. A eminência, ou a sua falta, era uma função da hereditariedade, alegava ele, e não de oportunidade. Galton escreveu English Men of Science (Homens de Ciência Ingleses), em 1874, e Natural lnherítance (Herança Natural), em 1889, além de mais de trinta artigos sobre problemas de hereditariedade. Seu interesse por esse assunto, que começara pelo indivíduo e pela família, abarcou a raça humana como um todo. Galton fundou a revista Biometrika em 1901, estabeleceu o Laboratório de Eugenia no University Coilege de Londres, em 1904, e fundou uma organização para a promoção da ideia do aprimoramento racial; tudo isso existe ainda hoje. Os Métodos Estatísticos Assinalamos o interesse de Galton pelas medidas e pela estatística. Ao longo de sua carreira, ele nunca parecia plenamente satisfeito com um problema até descobrir alguma maneira de quantificar os dados e analisá-los estatisticamente. Ele não se limitou a aplicar métodos estatísticos; também os desenvolveu. Um estatístico belga, Adolph Quetelet, tinha sido o primeiro a aplicar a dados biológicos e sociais métodos estatisticos e a curva normal de probabilidade. A curva normal fora usada em trabalhos sobre a distribuição de medidas e erros na observação científica, mas o principio da distribuição normal só veio a ser aplicado à variabilidade humana quando Quetelet demonstrou que medidas antropométricas de amostras aleatórias de pessoas geravam tipicamente uma curva normal. Ele mostrou que medidas da estatura de dez mil sujeitos se aproximavam da curva normal de distribuição, e usou a frase honnne moyen (o homem médio) para exprimir a descoberta de que a maioria dos indivíduos se aglomera em tomo da média ou centro da distribuição, e que um número cada vez menor vai sendo encontrado à medida que nos aproximamos dos extremos. Galton ficou impressionado com os dados de Quetelet e supôs que resultados semelhantes poderiam ser encontrados para características mentais. Ele descobriu, por exemplo, que as notas dadas em exames universitários seguiam a mesma distribuição da curva normal dos dados de medida física de Quetelet. Devido à simplicidade da curva normal e à sua coerência em inúmeros traços, Galton propôs que um grande conjunto de medidas ou valores de características humanas poderia ser significativamente definido e resumido por dois números:  o valor médio da distribuição (a média)  e a dispersão ou gama de variação em tomo desse valor médio (o desvio-padrão). A obra de Galton na estatística produziu uma das mais importantes medidas da ciência, a correlação. O primeiro relato sobre o que ele denominou “co-relações” apareceu em 1888. As técnicas modernas de determinação da validade e da confiabilidade de testes, bem como os métodos de análise factorial, são resultados directos da descoberta, por Galton, da correlação, produzida quando ele observou que as características herdadas tendem a regredir na direção da média. Por exemplo, ele observou que os homens altos não são, em média, tão altos quanto os pais, enquanto os filhos de homens muito baixos são, em média, mais altos do que os pais. Ele concebeu o meio gráfico de representar as propriedades básicas do coeficiente de correlação e desenvolveu uma fórmula de cálculo, hoje em desuso. Galton aplicou o método da correlação a variações de medidas físicas, demonstrando, por exemplo, uma correlação entre a altura do corpo e o comprimento da cabeça. Com o estímulo de Galton, seu aluno Karl Pearson desenvolveu a fórmula matemática usada ainda hoje para o cálculo do coeficiente de correlação, chamada de coeficiente de correlação do produto-momento de Pearson. O símbolo do coeficiente de correlação, r, vem da primeira letra da palavra regressão, em reconhecimento à descoberta de Galton da tendência de as características humanas herdadas regredirem na direção da média ou mediana. A correlação é uma ferramenta fundamental das ciências sociais e do comportamento, bem como da engenharia e das ciências naturais. A partir da obra pioneira de Galton, foram desenvolvidas muitas outras técnicas estatísticas. Os Testes Mentais Com o desenvolvimento de testes mentais específicos, Galton pode ser considerado o primeiro clínico da psicologia. Diz-se que ele criou os testes mentais, embora o termo venha de James McKeen Cattell, um seu discípulo americano e ex-aluno de Wilhelm Wundt. Galton começou supondo que a inteligência podia ser medida em termos das capacidades sensoriais da pessoa ou seja, quanto maior a inteligência, tanto maior o nível de discriminação sensorial. Ele derivou essa suposição da concepção empirista de John Locke, segundo a qual todo o conhecimento é adquirido através dos sentidos. Se isso é verdade, concluiu Galton, “os indivíduos mais capazes têm os sentidos mais aguçados. O facto de os idiotas mais rematados costumarem ter deficiências sensoriais parecia confirmar essa linha de pensamento” (Loevin— ger, 1987, p. 98). Galton precisou inventar os aparelhos com os quais pôde tomar, rápida e precisamente, as medidas sensoriais para uma grande quantidade de pessoas. Com engenho e entusiasmo típicos, concebeu vários instrumentos. Para determinar a mais alta freqüência de som capaz de ser ouvida, inventou um apito, que testou em animais e em pessoas. (Ele gostava de percorrer o zoológico de Londres com o apito fixado na parte inferior de uma bengala oca; esfregava uma ampola de borracha na parte superior e observava as reações dos animais.) Esse apito de Galton, em forma aperfeiçoada, foi um equipamento-padrão do laboratório de psicologia até ser substituído, nos anos 30, por um aparelho eletrónico mais sofisticado. Outros instrumentos incluiram um fotômetro para medir a precisão com a qual um sujeito poderia igualar duas manchas de cor, um pêndulo calibrado para medir o tempo de reação a sons e luzes, uma série de pesos a serem dispostos em ordem de grandeza para medir a sensibilidade cinestésica, uma barra com uma escala variável de distâncias para testar a estimativa da extensão visual e conjuntos de garrafas contendo diferentes substâncias para testar a discriminação olfativa. A maioria dos testes de Galton serviu de protótipo para o equipamento-padrão dos actuais laboratórios. De posse dos seus novos testes, Galton começou a reunir grande número de dados. Fundou o seu Laboratório Antropométrico, em 1884, na Exposição Internacional de Saúde, levando-o mais tarde para o Museu de South Kensington, em Londres. O laboratório esteve em actividade por seis anos, período durante o qual Galton coligiu dados de mais de nove mil pessoas. Os instrumentos de medida antropométrica ficavam sobre uma longa mesa na extremidade de uma sala estreita. Pagando uma entrada de três pence, a pessoa podia passar pela mesa e ser medida por um assistente que registava os dados num cartão. Além das medidas acima assinaladas, obtinham-se informações sobre a altura, o peso, a capacidade torácica, a força de impulsão e de compressão, a rapidez de sopro, a audição, a visão e o sentido cromático. O objectivo desse programa de testes em larga escala era definir a gama das capacidades humanas. Galton esperava testar toda a população britânica para determinar o nível exacto dos recursos mentais colectivos. Um século mais tarde, um grupo de psicólogos dos Estados Unidos analisou os dados de Galton (Johnson et ai., 1985). Eles encontraram substanciais correlações teste-reteste, indican do que os dados tinham consistência estatistica. Além disso, esses dados forneciam informações úteis sobre tendências de desenvolvimento durante a infância, a adolescência e a maturidade da população testada. Medidas como peso, alcance do braço, capacidade respiratória e força de compressão revelaram um padrão semelhante ao verificado no desenvolvimento dessas capacidades tal como relatado na literatura psicológica mais recente; a excepção fica por conta do facto de a taxa de desenvolvimento da época de Galton parecer ligeiramente mais lenta. Assim, os psicólogos concluíram que os dados de Galton continuam a ser instrutivos em nossos dias. A Associação Galton trabalhou em dois problemas na área da associação: a diversidade das associações de ideias e o tempo necessário à produção de associações. Um dos métodos de estudo da diversidade das associações usados por Galton foi caminhar 450 jardas em Pau Mali, rua de Londres que fica entre a Praça de Trafalgar e o Palácio de St. Jarnes, concentrando sua atenção num objecto até que ele sugerisse uma ou duas ideias associadas. Na primeira vez que tentou isso, ficou surpreso com o número de associações advindas dos quase trezentos objectos que vira. Galton descobriu que muitas dessas associações eram lembranças de experiências passadas. Em seu laboratório no Museu de South Kensington, de Londres, Galton usou uma variedade de novos dispositivos para realizar o primeiro programa de testes mentais em larga escala, incluindo incidentes há muito esquecidos. Refazendo o percurso dias depois, encontrou uma considerável repetição das associações evocadas na primeira caminhada. Isso diminuiu muito seu interesse pelo problema, e ele se voltou para os experimentos do tempo de reação, que produziam resultados mais úteis. Para esses experimentos, Galton preparou uma relação de setenta e cinco palavras, escrevendo cada uma numa tira separada de papel. Depois de uma semana, olhou uma de cada vez e usou um cronômetro para registrar o tempo necessário à produção de duas associações para cada palavra. Muitas das associações eram palavras simples, mas muitas lhe surgiram como imagens ou quadros mentais cuja descrição requeria várias palavras. Sua tarefa seguinte foi determinar a origem dessas associações. Ele descobriu que cerca de 40% remontava a eventos de sua infância e adolescência. Esta pode ser considerada uma das primeiras demonstrações da influência das experiências infantis na personalidade adulta. Talvez de maior importância do que os seus resultados tenha sido o seu método experimental de estudo de associações. Sua invenção do teste de associação de palavras marcou a primeira tentativa de submeter a associação à pesquisa de laboratório. Wilhelm Wundt adaptou a técnica, limitando a resposta a uma única palavra, e a usou para pesquisas em seu laboratório de Leipzig. O analista Carl Jung aperfeiçoou-a para seus próprios estudos de associação de palavras. As Imagens Mentais: A investigação feita por Galton das imagens mentais assinala o primeiro uso amplo do questionário psicológico. Pedia-se aos sujeitos que se recordassem de uma cena, como a da mesa do desjejum, e tentassem evocar imagens dela. Eles eram instruídos a indicar se as imagens eram tênues ou nítidas, claras ou escuras, coloridas ou não coloridas, etc. Para surpresa de Galton, o primeiro grupo de sujeitos, amigos cientistas seus, não relatou nenhuma imagem nítida! Alguns nem sequer tinham certeza sobre o que Galton falava ao referir-se a imagens. Recorrendo a sujeitos de capacidade mais mediana, obteve relatórios de imagens nítidas e distintas que muitas vezes eram cheias de cores e detalhes. Galton descobriu que as imagens das mulheres e crianças eram particularmente concretas e detalhadas. Investigando cada vez mais pessoas, descobriu que as imagens geralmente têm uma distribuição normal na população. Esse trabalho inaugurou uma longa linha de pesquisas sobre imagens, estudos que corroboraram em larga medida os resultados por ele obtidos. Tal como ocorria com boa parte de suas pesquisas, seu trabalho com as imagens tinha raízes na tentativa de demonstrar semelhanças hereditárias. Ele descobriu que a semelhança em termos de imagens é maior entre parentes do que entre pessoas sem parentesco. Outros Estudos : A riqueza do talento de Galton é patenteada pela variedade de suas pesquisas. Além dos importantes programas já discutidos, ele certa vez tentou colocar-se no estado mental dos loucos imaginando que todos ou tudo o que via enquanto passeava o estavam espionando. Ao fmal do passeio matinal, cada cavalo parecia estar observando-o directamente, ou, o que era igualmente suspeito, disfarçando sua espionagem ao não lhe prestar, de maneira sofisticada, nenhuma atenção” (Watson, 1978, pp. 328-329). Na época em que Galton viveu, era acirrada a controvérsia entre a teoria da evolução e a teologia fundamentalista. Com objectividade característica, ele pesquisou o problema e concluiu que, embora muitas pessoas tivessem intensas crenças religiosas, isso não constituía prova suficiente da validade dessas crenças. Ele discutiu o poder da oração em termos da produção de resultados e verificou que isso de nada servia aos médicos na cura dos pacientes, nem aos meteorologistas na invocação de mudanças no tempo, ou nem sequer aos clérigos na condução de seus negócios cotidianos. Ele acreditava que, no tocante às relações com os outros ou em termos da vida emocional, pouca diferença havia entre pessoas que professavam uma crença religiosa e as que não o faziam. Esperava dar ao mundo um novo conjunto de crenças, estruturado em termos científicos, para substituir o dogma religioso. A seu ver, a meta a ser alcançada deveria ser, em vez de um lugar no céu, o desenvolvimento evolutivo de uma raça humana mais perfeita e mais nobre através da eugenia. Galton sempre parecia estar calculando alguma coisa. Ele ocupava o tempo em palestras e no teatro contando os bocejos e posturas irrequietas do público e descrevia esses resultados como uma medida do tédio. Enquanto era retratado, contou o número de pinceladas dadas pelo artista — umas vinte mil. Em certa ocasião, decidiu contar com odores, e não com números; treinando-se para esquecer os números, atribuiu valores numéricos a cheiros como o da cânfora e da hortelã-pimenta, e aprendeu a somar e subtrair pensando neles. Desse exercício intelectual resultou um artigo intitulado “Aritmética pelo Cheiro”, publicado no primeiro número da revista americana Psychological Review. Galton passou apenas quinze anos pesquisando questões psicológicas, mas seus esforços nesse período relativamente curto influenciaram a direção que a nova psicologia iria tomar. Ele não era de facto mais psicólogo do que eugenista ou antropólogo. Era um individuo extremamente bem-dotado cujo talento e temperamento não podiam ficar restritos a uma única disciplina. Basta considerar as áreas de pesquisa a que ele se dedicou, áreas pelas quais os psicólogos mais tarde se interessaram: adaptação, hereditariedade versus ambiente, comparação de espécies, desenvolvimento infantil, o método do questionário, técnicas estatísticas, diferenças individuais, testes mentais. Pelo alcançe dos seus interesses e métodos, Galton influenciou a psicologia americana bem mais do que o fundador, Wilhelm Wundt. A Influência da Psicologia Animal sobre o Funcionalismo. A teoria evolutiva de Charles Darwin serviu de impulso para a psicologia animal. Antes de Darwin publicar sua teoria, não havia razão para que os cientistas se interessassem pela mente animal, já que os animais eram considerados desprovidos de mente, autômatos sem alma. Afinal, Descartes tinha acentuado que os animais não tinham semelhança com os seres humanos. A Origem das Espécies alterou essa noção. As provas de Darwin levaram à sugestão de que não havia uma distinção bem definida entre as mentes humana e animal. Era possível postular uma continuidade entre todos os aspectos físicos e mentais dos seres humanos e dos animais porque os seres humanos eram considerados derivados dos animais por meio do constante processo evolutivo da mudança e do desenvolvimento. “Não há diferença fundamental entre o homem e os mamíferos superiores em termos de faculdades mentais”, afirmou Darwin (1871, p. 66). Se se pudesse demonstrar a existância da mente nos animais e provar a continuidade entre as mentes animal e humana, seria possível refutar a dicotomia homem- animal defendida por Descartes. Por isso, iniciou-se a busca de provas da presença da mente ou de inteligância nos animais. Darwin defendeu sua teoria no livro Expression of the Emotions Mim and Animais (A Expressão das Emoções no Homem e nos Animais) (1872), no qual afirmou que o comportamento emocional humano resulta da herança do comportamento que um dia serviu aos animais mas deixou de ter relevância para os seres humanos. Um dos muitos exemplos que usou para demonstrar essa ideia foi o modo como as pessoas arreganham os lábios para revelar escárnio. Ele sustentava que esse movimento era um resquício da maneira pela qual os animais arreganhavam seus caninos quando irados. Nos anos posteriores à publicação de A Origem das Espécies, o tópico da inteligência animal ganhou mais popularidade, não somente entre os cientistas como também para o público mais amplo. Nas décadas de 1860 e 1870, muitas pessoas escreviam para revistas científicas e populares a fim de relatar exemplos de comportamento animal considerados indícios de capacidades mentais até então insuspeitadas. Circulavam milhares de histórias acerca de façanhas de inteligência incomum realizadas por gatos e cães, cavalos e porcos, caracóis e pássaros. O próprio Wilhelrn Wundt não ficou imune a essa tendência. Em 1863, antes de se tornar o primeiro psicólogo do mundo, ele escreveu sobre as capacidades intelectuais de uma ampla gama de formas vivas, de pólipos a besouros e castores. Afirmou que os animais que exibiam um mínimo de capacidades sensoriais também deviam possuir poderes de julgamento e de inferência consciente. Os chamados animais inferiores diferem dos seres humanos não tanto em termos de capacidades como pelo fato de não terem recebido a mesma educação e treinamento. Trinta anos depois, Wundt ficou muito menos generoso em termos de atribuição de inteligência aos animais, mas, por algum tempo, a sua voz se uniu à dos muitos que sugeriam que os animais poderiam ser tão inteligentes quanto o homem. Quem formalizou e sistematizou o estudo da inteligência animal foi o fisiologista britânico George John Romanes (1848-1894), que, quando criança, foi considerado pelos pais “um completo estúpido” (Richards, 1897, p. 334). Quando jovem, Romanes ficara impressionado com os escritos de Darwin. Mais tarde, depois de ele e Darwin terem se tomado amigos, este lhe deu suas anotações sobre o comportamento animal. Assim, Darwin escolheu Romanes para dedicar-se a essa parte do seu trabalho, qual seja aplicar a teoria da evolução à mente tal como Darwin a aplicara ao corpo. Romanes tomou-se um digno sucessor. Era bem abastado e não tinha de se preocupar com ganhar a vida. Seu único emprego era o de conferencista em tempo parcial na Universidade de Edimburgo, o que exigia a sua presença apenas duas semanas por ano. Ele passava os invernos em Londres e Oxford, e os verões à beira-mar, num local onde construiu um laboratório particular tão bem equipado quanto o de qualquer universidade. Em 1883, Romanes publicou Animal Inteiligence (kiteligência Animal), considerado em geral o primeiro livro de psicologia comparada. Ali reunia dados sobre o comportamento de protozoários, formigas, aranhas, répteis, peixes, aves, elefantes, macacos e animais domésticos. Seu propósito era demonstrar o alto grau da inteligência animal, bem como sua semelhança com o funcionamento intelectual humano, ilustrando assim uma continuidade no desenvolvimento mental. Em suas palavras, ele desejava mostrar que “não há diferenças de modalidade entre os actos de razão realizados pelo caranguejo e qualquer ato de razão realizado por um homem” (Richards, 1987, p. 347). A metodologia de Romanes é denominada, em termos um tanto depreciativos, método anedótico, isto é, o uso de relatos observacionais, e com freqüência casuais, do comportamen to animal. Muitos dos relatos que ele aceitava vinham de observadores acríticos e não treinados, sendo portanto vulneráveis a críticas que os consideravam observações incorrectas, descrições descuidadas e interpretações tendenciosas. De que maneira Romanes derivava suas descobertas sobre a inteligência animal dessas observações anedóticas? Ele empregava uma técnica curiosa, que terminou por ser descartada, conhecida como introspecção por analogia. Nessa abordagem, os pesquisadores supõem que os mesmos processos mentais passados em sua mente também ocorrem na mente dos animais observados. A existência da mente e de funções mentais específicas é inferida pela observação do comportamento animal e pela elaboração de uma analogia , uma correspondência ou relação, entre os processos mentais humanos e os que se supõem ocorrer nos animais. Romanes descreveu o processo da introspecção por analogia nos seguintes termos: Partindo do que sei subjectivamente sobre as operações da minha própria mente, bem como das actividades que, no meu organismo, essas operações parecem desencadear, processos por analogia para inferir, das actividades observáveis realizadas por outros organismos, o facto de certas operações mentais fundamentarem ou acompanharem essas actividades (Mackenzie, 1977, pp. 56-57). Através do uso dessa técnica, Romanes concluiu que os animais são capazes dos mesmos tipos de racionalização, ideação, raciocínio complexo e capacidade de resolução de problemas que os seres humanos exibem. Alguns dos seus seguidores até atribuiram aos animais um nível de inteligência bem superior ao da pessoa média. Num estudo com gatos, que Romanes considerava os mais inteligentes animais afora os macacos e elefantes, ele discorreu sobre o comportamento do gato do seu cocheiro. Através de uma série de movimentos complicados, o gato conseguia abrir uma porta que levava aos estábulos. Empregando a introspecção por analogia, Romanes chegou à seguinte conclusão: Os gatos, nesses casos, têm uma ideia bem definida quanto às propriedades mecânicas de uma porta; eles sabem que, para conseguir abri-la, mesmo quando sem o trinco, é necessário empurrá- la. Primeiro o animal deve ter observado que a porta é aberta pela mão que segura a maçaneta e move o trinco. Em seguida, deve raciocinar, usando ‘a lógica dos sentimentos”: se uma mão pode fazê-lo, por que não uma pata? O facto de empurrar com a pata traseira depois de abrir o trinco deve decorrer de um raciocínio adaptativo (Romanes, 1883, pp. 421-422). Embora o trabalho de Romanes esteja bem aquém do rigor científico moderno, ele na verdade seguiu certos critérios para julgar a confíabilidade dos relatos que usava. Apesar dessa precaução, a linha demarcatória entre o fato e a interpretação subjetiva, em seus dados, não é nitida. Mesmo que se reconheçam as deficiências em termos de seus dados e método, ele é respeitado por seus esforços pioneiros na promoção do desenvolvimento da psicologia comparada e na preparação do caminho para a abordagem experimental que viria a seguir. Vimos que, em muitas áreas da ciência, o emprego de dados observacionais precede o desenvolvimento de uma metodologia experimental mais aprimorada, e foi Romanes quem deu início ao estágio observacional da psicologia comparada. As fraquezas inerentes ao método anedótico e à introspecção por analogia foram adniitidas por Conwy Lloyd Morgan (1852-1936), que Romanes designou como seu sucessor. Professor de psicologia e educação na Universidade de Bristol, Inglaterra, e um dos primeiros homens a montar numa bicicleta nos limites da cidade. Morgan também foi geólogo e zoólogo. Ele propôs uma lei da parcimônia (também chamada de Cânone de Lloyd Morgan), num esforço de opor-se à tendência de antropomorfizar os animais e atribuir-lhes demasiada inteligência. O princípio determina que o comportamento de um animal não deve ser interpretado como resultante de um processo mental superior se puder ser explicado em termos de um processo mental inferior. Morgan apresentou a sua ideia em 1894, podendo tê-la derivado de uma lei da parcimônia publicada por Wundt dois anos antes. Wundt dissera que “os princípios explicativos complexos só podem ser usados quando os mais simples se mostrarem insuficientes” (Richards, 1980, p. 57). Morgan seguiu essencialmente a mesma abordagem metodológica de Romanes: observar o comportamento de um animal e tentar explicá-lo por meio de um exame introspectivo dos seus próprios processos mentais. Contudo, aplicando sua lei da parcimônia, ele evitava atribuir complexos processos mentais de nivel superior aos animais quando seu comportamento podia ser explicado mais simplesmente em termos de processos de nível inferior. Ele acreditava que a maior parte dos comportamentos animais podia ser vista como resultado de aprendizagem ou associação baseadas na experiência sensorial, sendo a aprendizagem um processo de nível mais baixo do que o pensamento racional ou a ideação. Com o cânone de Morgan, o uso da introspecção por analogia tomou-se mais restrito, mas terminou por ser substituido por méto dos mais objectivos. Morgan foi o primeiro a realizar estudos experimentais em larga escala no campo da psicologia animal. Embora não conduzidos sob condições científicas rígidas, seus primeiros experimentos envolviam cuidadosas e detalhadas observações do comportamento animal, na maioria das vezes nos ambientes naturais, mas com algumas modificações artificialmente induzidas. Esses estudos não permitiam o mesmo grau de controle das experiências de laboratório, mas constituiram um importante avanço em relação ao método anedótico de Romanes. Embora os primeiros trabalhos na área da psicologia comparada tivessem origem britãnica, a liderança do campo logo passou para os Estados Unidos. As razões para essa mudança incluem a morte prematura de Romanes por tumor cerebral e a decisão de Morgan de deixar a carreira de pesquisador e dedicar-se à administração universitária. A psicologia comparada foi resultado da comoção e da controvérsia provocadas pela noção darwinista de continuidade das espécies. Talvez ela tivesse surgido sem a teoria da evolução, mas é provável que não tivesse tido um início tão bem fundamentado, nem tivesse surgido quando surgiu. São fundamentais para a teoria de Darwin a noção de função e a asserção de que, à medida que uma espécie evolui, sua estrutura física vai sendo determinada pelos requisitos necessários à sua sobrevivência. Essa premissa levou os biólogos a considerar cada estrutura anatômica um elemento que funciona num sistema vivo total em adaptação. Quando começaram a examinar processos mentais da mesma maneira, os psicólogos criaram um novo movimento: a psicologia funcional. Críticas ao Funcionalismo Na virada do século, a psicologia assumira nos Estados Unidos um carácter próprio, distinto do da psicologia de Wundt e do estruturalismo de Titchener, que não se interessavam em estudar o propósito ou a função da consciência. Vimos que o movimento funcionalista estava se desenvolvendo a partir das obras de Darwin e de Galton e que tinha como foco a operação dos processos conscientes, e não a estrutura ou o conteúdo da consciência. O principal interesse dos psicólogos funcionais era a utilidade ou o propósito dos processos mentais para o organismo vivo em suas permanentes tentativas de adaptar-se ao seu ambiente. Os processos mentais eram considerados actividades que levavam a conseqüências práticas, em vez de elementos componentes de alguma espécie de padrão. A orientação prática do funcionalismo levou inevitavelmente os psicólogos a se interessar pela aplicação da psicologia a problemas do mundo real. Desenhada por Wundt e Titchener, a psicologia aplicada foi acolhida entusiasticamente pelos funcionalistas, tornando- se seu mais importante legado, um legado que caracteriza a actual psicologia americana. Examinaremos o crescimento e o impacto da psicologia aplicada no decurso do nosso debate onde trataremos do desenvolvimento e da formalização da psicologia funcional nos Estados Unidos no fmal do século XIX e começo do século XX. Por que a psicologia funcional progrediu e floresceu nos Estados Unidos, e não na Inglaterra, onde o espírito funcional surgiu? A resposta está no temperamento americano, suas características sociais, económicas e políticas peculiares. O idealismo americano estava pronto para a evolução e para a atitude funcionalista dela derivada. Herbert Spencer (1820-1903) e a Filosofia Sintética Em 1882, um filósofo inglês autodidacta, de sessenta e dois anos, que tinha inventado uma vara de pescar desmontável, chegou aos Estados Unidos, onde foi saudado como herói nacional. Foi recebido no navio, em Nova York, por Andrew Camegie, o patriarca multimilionário da indústria do aço americana. Carnegie louvou o filósofo como um messias. Aos olhos de muitos lideres americanos, nos negócios, na ciência, na política e na religião, o homem era de facto um salvador; foi convidado para jantares regados a vinho e recebeu honras e elogios em profusão. Seu nome era Herbert Spencer, o intelectual que Darwin denominava o “nosso filósofo”, e seu impacto sobre a cena americana foi monumental. De mente prolifica, escreveu muitos livros, vários dos quais ditava a uma secretária nos intervalos de de tênis ou enquanto passeava num barco a remo. Suas obras eram publicadas em série em revistas populares, seus livros vendiam centenas de milhares de exemplares, e seu sistema de filosofia era ensinado em universidades por professores de quase todas as disciplinas. Suas idéeas, lidas por pessoas de todos os níveis da sociedade, influenciaram uma geração inteira de americanos. Se já existisse a televisão, Spencer sem dúvida teria aparecido em programas de entrevistas e sido ainda mais louvado. A filosofia que propiciou a Spencer tanto reconhecimento e aclamação foi, numa palavra, o darwinismo, a noção da evolução e da sobrevivência dos mais capazes, que ultrapassava a própria obra de Darwin. Nos Estados Unidos, era intenso o interesse pela teoria da evolução de Darwin; lá, suas ideias foram aceitas mais depressa e de modo mais pleno do que na sua terra natal. A teoria da evolução era discutida e acolhida não só nas universidades e entre as camadas esclarecidas, como também em revistas populares e até em algumas publicações religiosas. Spencer escreveu sobre as implicações da evolução para o conhecimento e a experiência do homem. Ele afirmava que o desenvolvimento de todos os aspectos do universo, incluindo o carácter huniano e as instituições sociais, é evolutivo, operando de acordo com o princípio da sobrevivência dos mais capazes, expressão que ele cunhou. Foi a sua ênfase no que veio a ser denominado darwinismo social, a aplicação da evolução à natureza humana e à sociedade, que foi recebida com tanto entusiasmo na América. A concepção utópica de Spencer sustentava que, por meio da sobrevivência dos mais capazes, evidentemente só os melhores sobreviveriam. Por conseguinte, a perfeição humana era inevitável desde que nada interferisse na ordem natural das coisas. Ele defendia com veemência o individualismo e um sistema económico de laissez-fafre, opondo-se a toda tentativa governamental de regulamentar a vida dos cidadãos, condenando até subsídios à educação e à habitação. Devia-se deixar que as pessoas e organizações se desenvolvessem a si mesmas e à sociedade a seu próprio modo, da mesma maneira como as outras espécies vivas foram deixadas no mundo da natureza livres para se desenvolver e se adaptar. Qualquer ajuda do Estado seria uma interferência no processo evolutivo natural. As pessoas, empresas ou instituições que não pudessem adaptar-se ao ambiente eram incapazes de sobreviver, devendo-se permitir que perecessem ou se extinguissem em nome da melhoria da sociedade como um todo. Se os governos continuassem a sustentar os pobres e fracos, estes durariam, enfraquecendo por fim toda a sociedade, além de violarem a lei primária segundo a qual só os mais fortes e mais capazes sobrevivem. Spencer assinalou que, garantindo que só os melhores sobrevivam, as sociedades podem se aprimorar e alcançar eventualrnente a perfeição. Essa mensagem era compatível com o credo e o espírito individualista da América na época, e as frases “sobrevivência dos mais capazes” e “luta pela existência” logo se tornaram parte da consciência nacional. Elas reflectiam bem a sociedade americana do fmal do século XIX, período em que os Estados Unidos eram um exemplo vivo das ideias de Spencer. Essa nação pioneira estava sendo fundada por pessoas muito empenhadas que acreditavam na livre iniciativa, na auto-suficiência e na independência quanto à regulamentação governamental. Elas sabiam tudo sobre a sobrevivência dos mais capazes a partir de sua própria experiência cotidiana. Ainda havia muita terra livre disponivel para quem tivesse a coragem, a astúcia e a capacidade de conquistá-la e arrancar dela a sobrevivência. Os princípios da selecção natural eram demonstrados de modo vivido no dia-a-dia, particularmente na fronteira oeste, onde a sobrevivência e o sucesso dependiam da capacidade de adaptação às exigências de um ambiente hostil; quem não conseguia adaptar-se não sobrevivia. O historiador americano Frederick Jackson Turner descreveu os sobreviventes nos seguintes termos: Aquela rudeza e força combinadas com a argúcia e a curiosidade inquisitiva; aquela inclinação mental prática e inventiva, pronta a encontrar expedientes; aquele magistral domínio de coisas materiais.., forte na conquista de grandes metas; aquela energia irrequieta e nervosa; aquele individualismo dominante” (Turner, 1947, p. 235). O povo dos Estados Unidos estava voltado para o prático, o útil e o funcional, e a psicologia americana, em seus estágios pioneiros, reflectia essas qualidades. Por isso, a América era mais propícia à teoria evolutiva do que a Alemanha, ou mesmo a Inglaterra. A psicologia americana tornou-se funcional porque a evolução e o seu espírito funcional estavam de acordo com o temperamento básico dos Estados Unidos. E, como as concepções de Spencer eram coerentes com o ethos americano em geral, seu sistema filosófico influenciou todos os campos do conhecimento, incluindo a nova psicologia. Spencer tinha escrito sobre a evolução em 1850, mas suas publicações haviam atraído relativamente pouca atenção. Depois do aparecimento de A Origem das Espécies, de Darwin, em 1859, Spencer associou-se ao movimento, e seu próprio ramo de evolucionismo mais especulativo fortaleceu-se com a posição bem documentada de Darwin. Seu trabalho era complementar, enquanto Darwin tinha a cautela de não fazer generalizações que extrapolassem seus minuciosos dados, Spencer se dispunha a discutir as implicações da teoria e a aplicar a doutrina evolutiva universalmente. Para consegui-lo, formulou o que denominou filosofia sintética. (Ele usou a palavra sintética no sentido de sintetizar ou combinar, e não com a conotação de algo artificial ou não natural.). Fundamentou esse sistema todo-abrangente na aplicação dos princípios evolutivos a todo conhecimento e experiência do homem. Especificamente, afirmou que o desenvolvimento de todos os aspectos do universo envolve dois processos: a diferenciação seguida pela integração. Toda coisa que se desenvolve ou cresce é, no início, homogênea e simples. Surgem partes patentemente distintas (diferenciação) e, num estágio ulterior, essas partes ímpares se juntam ou se combinam (integração) num novo todo funcional. Segundo Spencer, a sequência diferenciação-integração, mediante a qual todas as coisas vão da homogeneidade para a heterogeneidade, é evolutiva. A implicação dessa ideia para a psicologia é que, à medida que o sistema nervoso evolui em espécies cada vez mais complexas, ocorre um aumento correspondente na riqueza e na variedade de experiências a que o organismo é exposto; assim, há níveis cada vez mais elevados de funcionamento. O sistema de filosofia sintética de Spencer foi publicado, em dez volumes, entre 1860 e 1897. Esses livros foram aclamados por muitos dos principais pensadores da época como obras de gênio. C. Lloyd Morgan escreveu a Spencer que “a nenhum dos meus mestres intelectuais devo tanto gratidão quanto ao senhor”. Alfred Russel Wallace deu ao seu primeiro filho o nome de Spencer. Depois de ler um dos livros de Spencer, Darwin disse que ele era “dez vezes melhor do que eu” (Richards, 1987, p. 245). Dois dos volumes da filosofia sintética constituem The Principies of Psychology (Princípios de Psicologia), publicados inicialmente em 1855 e mais tarde usados por William James como manual do curso de psicologia que ele deu em Harvard. Nesses dois volumes, Spencer discute a noção de que a mente tem a sua forma actual devido a esforços passados e presentes de adaptação a vários ambientes. Acentuando a natureza adaptativa dos processos mentais e nervosos. Spencer escreveu que uma crescente complexidade de experiências e, por conseguinte, de comportamento, é parte do processo evolutivo da necessidade que um organismo tem de se adaptar ao seu ambiente para sobreviver. William James (1842-1910) Precursor da Psicologia Funcional. Há muito de paradoxal acerca de William James e do seu papel na psicologia americana. De um lado, ele foi por certo o principal precursor americano da psicologia funcional. Foi o pioneiro da nova psicologia científica nos Estados Unidos e o principal dos psicólogos, considerado ainda hoje por muitos o maior psicólogo americano que já existiu. Ainda assim, James chegou a negar que fosse um psicólogo ou que houvesse uma nova psicologia. Além disso, James era visto por alguns psicólogos da sua época como uma força negativa no desenvolvimento de uma psicologia científica, devido ao seu conhecidíssimo interesse pela telepatia, pela clarividência, pelo espiritualismo, pela comunicação com os mortos em sessões espíritas e por outras experiências místicas. Titchener, Cattell e outros destacados psicólogos americanos criticaram James por sua entusiástica aceitação de fenómenos mentalistas e psíquicos que eles, na qualidade de psicólogos experimentais, estavam tentando expulsar do seu campo. James não fundou um sistema formal de psicologia nem teve discípulos. Embora a psicologia à qual ele esteve associado estivesse tentando ser científica e experimental, James não foi um experimentalista, nem nas suas atitudes nem nas suas acções. A psicologia, que ele um dia chamou de “cienciazinha detestável”, não foi a paixão da sua vida, o que não era o caso de Wundt e Titchener. James trabalhou algum tempo no campo da psicologia e depois dedicou-se a outras coisas. Mesmo enquanto trabalhou activamente em psicologia, manteve-se independente, recusando-se a ser absorvido por qualquer ideologia, sistema ou escola. James não foi seguidor nem fundador, nem discípulo nem líder. Conhecia os avanços e as mudanças pelas quais a psicologia passava na época e envolveu-se a fundo com elas; contudo, foi capaz de seleccionar, dentre as várias posições, as partes compatíveis com a sua concepção de psicologia, tendo rejeitado o resto. Esse homem fascinante, que tanto contribuiu para a psicologia, deu-lhe as costas nos 147 últimos anos de sua vida. (Antes de fazer uma palestra em Princeton, ele pediu para não ser apresentado como psicólogo) . Disse que o campo consistia em uma elaboração do óbvio” e permitiu-lhe seguir seu caminho sem a sua presença dominadora. Ainda assim, seu lugar na história da psicologia está garantido e é significativo. Embora não tenha fundado a psicologia funcional, James escreveu e pensou, com clareza e eficácia dentro da atmosfera funcionalista que permeava a psicologia americana na época, e com isso influenciou o movimento funcionalista ao servir de inspiração às gerações subsequentes de psicólogos. William James nasceu no Astor House, um hotel da cidade de Nova York, no seio de uma conhecida e opulenta família. Seu pai dedicou-se com entusiasmo à educação dos cinco filhos, que se alternava entre a Europa (por causa de sua crença de que as escolas americanas eram demasiado liinitadas) e os Estados Unidos (por causa da convicção igualmente forte de que seus filhos deveriam ser educados entre seus compatriotas). Assim, a educação formal inicial de James, interrompida frequentemente por viagens, ocorreu na Inglaterra, na França, na Alemanha, na Itália, na Suíça e nos Estados Unidos. O pai também incentivou nos filhos a independência intelectual. Essas estimulantes experiências expuseram James às vantagens intelectuais e culturais da Inglaterra e da Europa, e durante toda a vida ele fez constantes viagens ao exterior. Além disso, o método favorito do pai no tratamento de doenças era enviar o membro da família enfermo à Europa, e não a um hospital. E sua mãe só dava aos filhos um amor e uma atenção significativos quando eles estavam doentes. Talvez por isso a saúde de James durante tantos anos raramente tenha sido boa. Embora parecesse acreditar que nenhum dos filhos precisaria se preocupar em aprender uma profissão ou ganhar a vida, o pai de James tentou encorajar o precoce interesse do jovem Williarn pela ciência. Aos quinze anos, ele ganhou um microscópio como presente de Natal. Já possuía equipamentos de química, um “bico de Bunsen e vidros com misteriosos líquidos que ele misturava, aquecia e transvasava, sujando os dedos e as roupas, o que consternava o pai e, por vezes, causava alarmantes explosões” (AlIen, 1967, p. 47). Aos dezoito anos, James decidiu ser artista. Seis meses no estúdio do pintor William Hunt em Newport, Rhode lsland, o convenceram de que ele não prometia, e, em 1861, entrou na Lawrence Scientific School de Harvard. James desistiu de sua primeira opção, a química, ao que parece porque desdenhava as laboriosas exigências das actividades de laboratório, e inscreveu-se numa escola médica. Mas tinha pouco entusiasmo pela prática da medicina, observando que “há muita impostura nela. Com a excepção da cirurgia, em que às vezes se consegue algo positivo, o médico faz mais devido ao efeito moral da sua presença sobre o paciente e a família do que por qualquer outro motivo Além disso, arranca dinheiro deles” (Allen, 1967, p. 98). James interrompeu os estudos médicos durante um ano para ser assistente do zoólogo Louis Agassiz numa expedição ao Brasil, destinada a colectar espécimes de animais marinhos na bacia do Rio Amazonas. A viagem deu-lhe a oportunidade de experimentar outra possível carreira, a de biólogo; entretanto, ele descobriu que não tolerava a colecta e a categorização precisas e ordenadas que esse campo exigia. Sua reação à química e à biologia foi profética em relação ao seu subsequente repúdio da experimentação em psicologia. Depois da expedição de 1865, a medicina já não tinha para ele o mesmo atractivo anterior; não obstante, James retomou relutantemente seus estudos porque nada mais lhe despertava o interesse. Interrompeu o trabalho por motivo de doença, queixando-se de depressão, distúrbios digestivos, insônia, problemas visuais e costas fracas. “Todos podiam perceber”, escreveu um historiador, “que ele estava sofrendo de América; a Europa era a única cura” (Milier e Buckhout, 1973, p. 84). Viajou para uma estação de banhos na Alemanha, mergulhou na literatura e escreveu longas cartas aos antigos. Mas, no cômputo geral, parecia tão infeliz quanto estivera em casa. Assistiu a algumas conferências sobre fisiologia na Universidade de Berlim e comentou que já era tempo de “a psicologia começar a ser uma ciência” (Allen, 1967, p. 140). Ele também exprimiu o desejo de poder, se escapasse da doença e passasse do inverno, aprender algo sobre psicologia com o grande Helmholtz e com “um homem chamado Wundt”, em Heidelberg. James passou do inverno, mas não se encontrou com Wundt na época. Contudo, o facto de ele ter ouvido falar de Wundt mostra que estava a par das tendências intelectuais mais recentes, mais ou menos dez anos antes de Wundt ter montado seu laboratório. James formou-se em medicina, em Harvard, no ano de 1869, mas sua depressão piorou e ele várias vezes pensou em suicídio. Tinha ataques de terror indistintos e horríveis e disse que sentia uma insegurança que nunca conhecera antes. Durante meses, não conseguiu sair à noite sozinho, tão intensos eram o seu medo e desespero. Nesses meses sombrios, começou a construir uma filosofia de vida, compelido não tanto pela curiosidade intelectual quanto pelo desespero. Depois de ler os ensaios sobre o livre-arbítrio do filósofo Charles Renouvier, James se convenceu da sua existência e resolveu que o seu primeiro acto de livre-arbítrio seria acreditar no livre-arbítrio e, em seguida, acreditar que poderia curar-se por meio dessa crença no poder da vontade. Ao que parece, ele obteve algum êxito, porque, em 1872, se sentia bem o bastante para aceitar um cargo de professor de fisiologia em Harvard, comentando que “é urna coisa nobre para o ânimo ter algum trabalho responsável a fazer” (James, 1902, p. 167). Um ano depois, tirou licença e viajou para a Itália; mas posteriormente retomou seu cargo de docente. No ano acadêmico 1875-1876, James deu seu primeiro curso de psicologia, intitulado “As Relações entre a Fisiologia e a Psicologia”. Assim, Harvard tornou-se a primeira universidade norte-americana a oferecer a nova psicologia experimental. James nunca recebera um treinamento formal em psicologia; a primeira conferência de psicologia a que assistiu foi a sua própria. Obteve junto à universidade a verba de trezentos dólares para comprar equipamentos de laboratório e de demonstração para o seu curso. O ano de 1878 testemunhou dois eventos importantes. O casamento de James, que lhe daria cinco filhos e um pouco da ordem de que ele tanto precisava em sua vida, e a assinatura de um contrato com a editora de Henry Holt, de que resultou um dos livros clássicos de psicologia. James acreditava que levaria dois anos para escrever o livro; levou dozeanos. Uma das razões que fizeram James demorar tanto para escrever o livro foi o seu hábito compulsivo de viajar. Quando não estava na Europa, podia ser encontrado vagando pelas Montanhas Adirondack de Nova York ou em New Harnpshire. Um biógrafo escreveu que: Suas cartas dão a impressão de que periodicamente ele precisava ficar sozinho, que todo relacionamento íntimo, com o tempo, acabava por fatigá-lo e que ele considerava as viagens um recurso crucial para lidar com a inquietação. É bem conhecido dos amigos de James o facto de ele programar uma viagem após o nascimento de cada filho, escrevendo depois sobre a sua culpa por tê-lo feito. Sempre estava ausente, mesmo que não fosse além de Newport, em feriados como o Natal, Ano Novo, etc., bem como em aniversários. Embora com certeza avaliasse as dificuldades que a sua ausência causava à família, ele parece ter sido incapaz de alterar o hábito. As fugas de James em relação à sua família eram escapadas diante das inumeras responsabilidades humanas, em busca da natureza, da solidão e do alívio místico (Myers, 1986, pp. 36-37). James continuou a dar aulas em Harvard nos intervalos das viagens e, em 1880, foi nomeado professor-assistente de filosofia. Foi promovido a professor de filosofia em 1885, passando esse título ao de professor de psicologia em 1889. Em suas viagens ao exterior, conheceu muitos psicólogos europeus, incluindo Wundt, que, como James escreveu, “deixou me uma impressão pessoal agradável, com sua voz suave e seu amplo e fácil sorriso”. Alguns anos depois, James observou que Wundt “não é um gênio, mas um professor, um ser cuja obrigação é saber tudo e ter opinião própria sobre tudo” (AlIen, 1967, pp. 251, 304). O livro de James, Princípios de Psicologia, foi publicado em dois volumes em 1890, e foi um tremendo sucesso. Esse livro ainda é considerado uma importante contribuição ao campo de psicologia. Quase oitenta anos depois de sua publicação, um psicólogo escreveu: “Os Princípios, de James, são sem dúvida o livro de psicologia mais erudito, mais provocador e, ao mesmo tempo, mais inteligível já publicado em inglês ou em qualquer outra língua” (MacLeod, 1969, p. iii). Um sinal de sua contínua popularidade é o facto de o livro ser lido por pessoas que não são obrigadas a fazê-lo. É claro que nem todos reagiram favoravelmente à obra. Wundt e Titchener, cujas concepções lamas atacara, não gostaram dele. “É literatura”, escreveu Wundt, “é belo, mas não é psicologia” (Bjork, 1983, p. 12). A reacção de James ao livro, depois de sua conclusão, também não foi favorável. Numa carta ao editor, ele descreveu a obra como “um abominável, distendido, tumefacto, ingurgitado e edemático volume, testemunhando apenas dois factos: primeiro, que não existe uma ciência da psicologia e, segundo, que W. J. é um incapaz” (Alien, 1967, pp. 314-315). Com a publicação dos Princípios, James decidiu que já dissera tudo o que desejava sobre a ciência da psicologia e que já não se interessava mais em dirigir o laboratório de psicologia. Providenciou para que Hugo Münsterberg, então professor da Universidade de Freiburg, na Alemanha, se tomasse director do laboratório de Harvard e se encarregasse dos cursos de psicologia, para ficar livre e dedicar-se à filosofia. BIBLIOGRAFIA www.dr-anly.blogspot.com 1. BOCK, Ana Mercês Bahia. FURTADO , Adair. TEXEIRA, Maria de Lurdes Trassi(2008) .Psicologias, Uma Introdução ao estudo de Psicologia.14ª edição, Saraiva Editores, São Paulo. 2. CAPARRÓS, António.(s/d) História da Psicolgia, 1ª edição, Platano Edições Técnica. 3. DAVIDOFF, Linda,L.(2001) Introdução à Psicologia, 3ª edição.Editora Pearson Makron Books, São Paulo . 4. MUELLER F.L(1987) História da Psicolgia II: A Psicologia Contemporânea I, colecção a saber, 5ª edição , editora Europa/América . 5. MUELLER F.L(1976) História da Psicologia, da Antiguidade a Bergson I, 2ª edição , editora Europa/América. 6. PENNA, A.G..(1981) História das Idéias Psicológicas. Editora Zahar Rio de Janeiro 7. 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